Marilene Felinto
Quis ver a Faixa de Gaza
A mídia é a mesma de 30 anos atrás, quando estive na região: omite os crimes de guerra de Israel, a privação, a segregação e a pauperização como conduta geopolítica
Já na década de 1990 quis ver a Faixa de Gaza e eles não deixavam. Cheguei na fronteira, muito perto. Agora, são capazes de operar o massacre final, a extinção da Palestina, a usurpação total daquele território já invadido, anexado e vilipendiado por Israel com apoio do imperialismo americano há mais de 70 anos.
Será uma carnificina – não pouparão civis, como nunca pouparam, nem velhos, nem crianças nem mulheres –, sob o olhar hipócrita e complacente de grande parte do mundo. É isso o que pretendem fazer, ao comando do ditador sanguinário, o primeiro-ministro de ultradireita Benjamin Netanyahu.
Como reação ao ataque do Hamas, grupo palestino que Israel chama de “terrorista”, e aparelhados pela propaganda judaica preponderante na mídia corporativa ocidental, Israel vai executando a consolidação do isolamento da Palestina.
A mídia é a mesma de 30 anos atrás, quando estive na região: omite os crimes de guerra de Israel, a privação, a segregação e a pauperização como conduta geopolítica contra os árabes palestinos – omite que o “terrorismo” foi plantado e regado ali mesmo, incentivado nos últimos tempos pelas invasões israelenses de mais fatias do território palestino, por ainda mais restrição de direitos e de ação.
Bem no início do anos de 1990, o então diretor de redação da Folha de S. Paulo sugeriu que eu fosse em viagem a Israel. O órgão de turismo israelense convidara oficialmente jornalistas e agentes de turismo para incrementar, na América do Sul, uma campanha cujo objetivo era divulgar que o país era seguro para turistas.
Duvidei da sugestão. Mas o diretor insistiu, lembrando que aquilo seria “pura bíblia”, alegando a alguma intimidade que eu teria com aquele livro. “Você vai gostar daquilo. Pura bíblia. Você olha para um lado e já vê a placa “Jericó”; olha para o outro lado e: “Monte das Oliveiras”, “Nazaré” etc.
Ele sabia da minha origem (embora fôssemos ambos ateus), da influência de minha mãe protestante na minha infância, da escola dominical que frequentei e onde se ensinava e discutia a bíblia com as crianças. Muitos anos depois, aliás, aquele mesmo diretor, interessado em colher material para escrever uma peça de teatro que tinha em mente, me pediu para ir com ele a um culto de alguma igreja protestante. Fomos. Episódio inusitado, que não cabe contar aqui.
Meu estranhamento diante daquela sugestão vinha também do fato de que o convite tinha sido feito ao então “caderno de turismo” do jornal, cujo editor foi o mesmo por décadas, amigo de juventude do diretor, e que só oferecia essas viagens de cortesia a gente do seu convescote particular. Naquele caderno, o editor parecia ter mais poder que o diretor. Entendi que a sugestão para que a viagem fosse minha era uma iniciativa pessoal do diretor. Enquanto ele me dizia “estude um pouco o país e vá”, uma luz acendeu na minha cabeça de “repórter por acaso”: Faixa de Gaza, Colinas de Golã, Palestina. Resolvi aceitar, impulsionada por esses nomes.
São capazes de operar o massacre final, a extinção da Palestina, a usurpação total daquele território já invadido
Ignorei a recomendação do tal “estudo”. O que me interessava mesmo era a Palestina, a condição daquele povo que resistia à ocupação desenfreada de sua terra, ao bloqueio que destruía sua economia, aos frequentes bombardeios israelenses que matavam inocentes. Logo notei, no entanto, que a excursão daquela comitiva de convidados tinha limites claros – era guiada por um funcionário do ministério do turismo israelense, que na verdade nos monitorava e vigiava.
No grupo, aliás, havia muito menos jornalistas do que agentes de viagens, estes últimos uma gente alegre, um tanto alienada, tudo o que a autoridade israelense queria: alienação, divulgação positiva da atmosfera de “segurança” e dos pontos turísticos – o Santo Sepulcro, a Via Dolorosa, o Mar Morto –, fachada para acobertar os crimes de guerra que Israel seguia cometendo.
Fui a única do grupo a pedir uma visita à Faixa de Gaza, por uma pauta jornalística. Negaram. E como insisti, passaram a me olhar feio, com desconfiança, como se eu fosse uma espiã a serviço do mundo árabe. Negaram. Um dia, de dentro do ônibus de excursão, mostraram-nos, como consolo, as Colinas de Golã ao longe, divisa com a Síria, outro território árabe incorporado ilegalmente por Israel em 1981.
Claro que, no meu caso, a excursão resultaria em outra coisa: na denúncia inútil, na contrapropaganda, na descrição da nítida opressão a que eram submetidos cotidianamente os árabes que circulavam por Jerusalém, por exemplo, e em outras cidades, na vigilância armada por Israel na porta das mesquitas, nas ruas, em todo lugar.
Não recomendei o país como destino seguro a ninguém, a turismo nenhum: pelo contrário, atmosfera bélica sufocante, agressiva, do momento de nossa chegada ao aeroporto, em que fomos tratados como estrangeiros suspeitos, interpelados e revistados pela autoridade de imigração – forças militares armadas com metralhadoras no peito – até o modo como cercearam e censuraram a tal excursão, convidada oficial de governo.
Não recomendei. Pelo contrário: escrevi sobre Jerusalém e seu estatuto de capital de Israel como rejeitado pela ONU e pela comunidade internacional, que considera Jerusalém Oriental território palestino ocupado por Israel.
O jornal publicou meu texto sem censura, e recebeu alto volume de cartas de protesto dos cães de guarda da propaganda pró-farsa israelense. Eu tinha visitado por obrigação os pontos turísticos e locais históricos do lugar, e feito inclusive o teste de tomar banho no Mar Morto com um livro aberto nas mãos, como quem lia, e não afundar. Mas só tratei superficialmente disso.
Somente quando voltei ao Brasil o diretor de redação me contou como ele, em viagem a Israel anterior à minha, tinha sido levado para uma sala isolada em pleno aeroporto e interrogado por longo tempo pela imigração, ele e um amigo, como se fossem agentes terroristas. Compreendi, então, que ele me enviara àquela viagem para escrever exatamente o que eu escrevera na reportagem e que ele mesmo não poderia ter dito, mas tinha vontade de dizer, ainda que seu jornal, sem teatro nem bíblia, seguisse a mesma linha anti-Palestina desde sempre.
O diretor, e grande amigo meu na época, tinha dessas, porque vivia, de certo modo, na sua via dolorosa particular, amordaçado pelo cargo que exercia e pela herança. Hoje está morto, ele e aquele mar de água pesada e tanta lama – o mar onde Israel vai afundando os corpos mortos de milhares de palestinos e dos próprios israelenses (uma minoria, é bem verdade, na comparação), o genocídio consentido, sem os jardins de bálsamos de Jericó, já extintos, sem Jesus nenhum, no vale de lágrimas do rio Jordão.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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