Coluna da Maria Ribeiro: Saudades da coragem de Marighella — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Saudades da coragem de Marighella

O Brasil pode ser bonito, pode ser popular, pode ser mais justo, ter erros mais humanos, e, inclusive, olha que beleza, pode até ser mais alegre

15 de Novembro de 2021

E então eu fui ao cinema. Sozinha. Sábado a noite. Ver um filme brasileiro. Não chegamos nem a um parágrafo inteiro e já temos aqui quatro frases bombásticas, carnaval feelings. A vida é mesmo o álcool gel que ainda passamos enquanto abraçamos dois anos de ausências. Seja de um irmão, de um programa antes trivial, de um trânsito na Via Dutra, de uma festinha de aniversario (sim, eu fiz).

Eu tava com muita saudade de ver um filme na tela grande. Eu tava com muita saudade de gostar do hino do meu país. Eu tava com muita saudade do Wagner Moura. Eu tava com muita saudade da coragem do Marighella. E também do diretor do Marighella. Hashtag #EuAmoQuandoAPessoaFísicaEAPessoaJurídicaSãoAMesmaPessoa.

A vida é mesmo o álcool gel que ainda passamos enquanto abraçamos dois anos de ausências

Por que nem sempre um produto cultural é “só” um produto cultural. Por que nem sempre só é só. E as aspas, vocês decidem, se repetem, agora – ou não. “Tio Humberto foi um brasileiro foda”, e mais não falo. Vejam o filme
Marighella estreou dois anos depois “do combinado”, digamos assim. Às vezes a gente espera dois anos para encontrar uma obra que parecia pronta; às vezes a gente espera 20 anos pra encontrar alguém que sempre esteve ali. Tempo, tempo, tempo, tempo. Aqui é para ouvir Caetano. Da musica de 1979 e dos “Anjos Tronchos” desse segundo ano pandêmico.

2021 não poderia ser mais bem feito pro roteiro de Wagner e Felipe Braga, e para as palavras de Mário Magalhães, autor da biografia sobre a qual o filme é inspirado. Se o filme – claramente boicotado e, portanto, censurado pelo governo Bolsonaro em 2019 – chega ao publico com atraso, nunca foi tao importante recebê-lo nesse quase pós-guerra, e não me refiro apenas à covid-19.

Eu não vou fazer jornalismo aqui. Talvez nem seja capaz. Em momento nenhum. Mas hoje, especialmente, me reservo o direito de não comentar as duas polêmicas recentes envolvendo meu Capitão Nascimento (sim, eu gosto de “Tropa de Elite”, e isso independe de ter integrado seu elenco).

Se Marighella dizia que não tínhamos tempo de ter medo, eu digo o mesmo. Não temos tempo para besteira, ‘pipol’. Ano que vem tem eleição

E se respeito a discussão em torno dos métodos da preparadora de atores Fatima Toledo, apesar de, pessoalmente, ter gostado de trabalhar com ela, ignoro solenemente a questão da marmita de acarajé. Se Marighella dizia que não tínhamos tempo de ter medo, eu digo o mesmo. Não temos tempo para besteira, “pipol”. Ano que vem tem eleição, e Moro é Bolsonaro, Bolsonaro é Moro, socorro, credo, Deus me livre – coloquei ate maiúscula.

Gonzaguinha, Mano Brown – o que é aquele podcast? – Seu Jorge, Wagner Moura, Gilberto Gil, Marighella, Ariano Suassuna, Machado de Assis, Luiz Inácio Lula da Silva, Marília Mendonca, Nelson Freire, Marcelo Freixo, Manuela d’Ávila, é pra esse Brasil que temos que olhar. Um Brasil que pode ser bonito, que pode ser popular, que pode ser mais justo, ter erros mais humanos, e, inclusive, olha que beleza, pode até ser mais alegre.

E viva as mulheres que criaram o filho de Marighella, o advogado Carlos Augusto, e que mantiveram sua coragem na familia.

No feminismo, a gente aprende que essa talvez seja a maior das lutas. Obrigada, Elza Sento Sé – interpretada no filme por sua neta, Maria Marighella. Obrigada, Maria. Obrigada Clara Charf, hoje com 96 anos, e também outra Maria, a Rita, mãe do poeta baiano (poesia é guerrilha). Obrigada Etelvina, obrigada Antonia, e, obrigada à documentarista – e minha amiga foda, assim como o Tio Humberto – Sandra Delgado, companheira e mãe dos três filhos do diretor do filme.

Sem a gente, nenhum país faz cinema.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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