Coluna da Maria Ribeiro: Agora somos outras — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Agora somos outras

Perder pai é uma dor de gente grande, mas ver a placa de “fim” perto da palavra “mãe”, tem sido uma espécie de puerpério ao contrário. Sem o horizonte bonito

06 de Outubro de 2023

Sempre tive dificuldade de acreditar em Deus. Creio no cinema, nos chocolates, na ciência, em novelas dos anos 80. Quando sou tomada pelo ceticismo, essas são minhas bóias. Quando tenho certeza de que “sentido” não é um substantivo, mas, no máximo, um tempo verbal, essa é minha caixa de primeiros socorros. Minha bombinha de ar de floresta, meu play em qualquer João Gilberto, minha vontade de dar like nas temperaturas bipolares dessa new primavera.

Porque, assim, numa boa. Com todo o respeito. E expondo minha imensa ignorância. Encontrar alguma explicação pra vida e pra morte que não se resuma ao acaso… Justificar catástrofes e desigualdades através de qualquer religião… Olha, pra mim, não cola. E eu queria muito que colasse. De qualquer forma, tô na fila. E nunca desisti de tentar, digamos assim. DM aberta, CBD na cabeceira e luzes indiretas nos cômodos de casa.

Dito isto, tenho rezado quase todos os dias. Pai Nosso, Ave Maria e qualquer junção de palavras que faça minha mãe se deslocar da solidão, que, imagino eu, a tenha tomado de assalto. Como se o silêncio fosse desembocar no abismo, repetimos “bendita sois vós entre as mulheres” pra preencher todas as lacunas da nossa relação.

Perder pai é uma dor de gente grande, mas ver a placa de “fim” perto da palavra “mãe”, tem sido uma espécie de puerpério ao contrário. Sem o horizonte bonito. E sem os créditos da duração. Pode ser que minha mãe ainda fique alguns anos comigo. Não sei. De qualquer forma, agora somos outras. E eu tô com saudades de como era antes.

Sono é ótimo, folgas são fundamentais, um drinque às vezes salva o dia. Instantes de felicidade, no entanto, me deixam de pé

Nesses dois meses em que minha rotina virou do avesso, tive algumas descobertas. A mais útil, talvez, tenha sido a percepção de que descanso só vem com alegrias. Sono é ótimo, folgas são fundamentais, um drinque às vezes salva o dia. Instantes de felicidade, no entanto, me deixam de pé. Melhor, me dão vontade de seguir andando.

Como aquele em que vivi ao sair do filme do Kleber Mendonça, por exemplo. Vi “Retratos Fantasmas” em um cinema de rua em Pinheiros. Em São Paulo. Em um sábado. O Recife, o texto do diretor, o seu tom de voz, a sua mãe, o Tom Zé, o Sidney Magal, o passado, a dor, as despedidas, tudo me deu uma imensa vontade de viver.

Uma imensa vontade de viver.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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