O desejo nos tempos de quaresma — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

O desejo nos tempos de quaresma

Seguimos a dialética fundamental entre Carnaval e Quaresma, o tempo da explosão mas também o tempo de recolhimento

01 de Março de 2023

“Sabe que o plano é perverso. Você fica toda assanhadinha. Deixa eu botar meu boneco (deixa)”.
Esse foi um dos hits do carnaval que passou. Pagode baiano do estreante Deivison que competiu com um conterrâneo seu, consagrado, Leo Santana: “Ela me pede mais. Não para não. E vem sentando gostosinho pro pai. Eu tô na zona de perigo”. Que por sua vez dialoga com o funk da consagradíssima Anitta: “Eu quero ver tu esquecer depois do chá que eu te dei. Ai papai, macetei. Oi, foi um tal de vuco vuco, tá maluco, quer replay”. Não vou comentar a rima rara que se forma na cadência de macetei e replay. Vou continuar na lista dos maiores sucessos.

E o hit “Tubarão Te amo“? Recebeu há poucos meses uma nova colagem (para ficar na referência modernista à la Braque e Picasso) e milhões de pessoas já chegaram na festa com a letra na ponta da língua: “Vem, senta na pica, safada. Rebola na pica e não para. Ela não pode ver o gordin. Que a buceta logo pisca. Andou na prancha. Cuidado, tubarão vai te pegar”.

Até a estética sertaneja, que você poderia imaginar mais ligada à família cristã, entra na lista: “Roça, roça em mim. Tira o chapéu e a bota e me bota gostosin. Roça, roça em mim. Que hoje tu vira o olho galopando gostosin”.

A poesia e o humor operam como um jogo de significantes, já diziam os pensadores da linguagem, desde literatos até Freud e Lacan. Como vemos no fluxo da roça que se lavora ao verbo roçar, assim como a rima do pronome mim com o adjetivo adverbiado gostosin, ou o deslocamento de a bota e me bota. Roçar, sentar, macetar, botar, você escolhe.

Pulsar e pausar, extravasar e elaborar, talvez seja essencial

Embora o clipe do Tubarão seja bem mais generoso – explícito – ao mostrar imagens de corpos com menos roupa e mais domínio dos quadris, a Roça não fica muito atrás com sua alusão a grandes tratores e animais.

Samba, arrocha, pagode, axé, funk, agronejo, country funk: essa complexidade que é o Brasil, com suas matrizes africanas, ibéricas, (norte)americanas, constrói, sobretudo no Carnaval, um potente imaginário de erotismo. Para exportação e consumo doméstico.

Enfim, a festa dionisíaca do Carnaval veio com tudo depois de três anos de contenção forçada pela pandemia. Carnaval sempre foi território privilegiado da pulsão. O pulso ainda pulsa, e não só o pulso.

Logo na sequência, a quaresma, o jejum, a contenção.
E depois de 40 dias, a Páscoa, outra prodigiosa expressão de vida.

Aí vislumbramos a lógica dos ritos de um novo ano. E a curiosa mania da cultura tentar padronizar nossas pluralidades, tão contraditórias.

Olha só a história. A celebração de festas pela dádiva do rebrotar da primavera é algo comum a inúmeras culturas que nunca tiveram contato nem no espaço nem no tempo com as igrejas, que inclusive se fortaleceram posteriormente. Nesse processo de domínio material e simbólico, próprio da história humana, elas foram ‘ordenando’ esses rituais. Talvez o que hoje chamamos de apropriação cultural. Sobre o hemisfério sul receber essas festas no outono, deixemos para outra coluna.

Cada povo comemorava a Páscoa em uma data diferente e era preciso ordenar esse caos religioso e político. A ressurreição de um filho de deus era coisa importante. Afinal, haveria milagre mais radical do que renascer?
Creio que, depois dos últimos acontecimentos no mundo, e também na minha pequena vida, pude ter a dimensão da importância desse verbo.

Como achar uma data única para a Páscoa?
Tudo começa pela luz. A grande volta ao redor do Sol de um planeta inclinado em seu eixo vai variando os gradientes de luz e calor, fazendo, por exemplo, verão na parte de cima enquanto é inverno na de baixo. Depois a metade iluminada vai ‘apagando’, enquanto a outra ‘acende’. Esse é o jogo das estações. O que significa que a cada semestre tem um único dia com 12h de luz e 12h de escuro. É o equinócio, do latim, aequus nox, noite igual. Nossa antiga busca do equilíbrio…

Então uma igreja – lugar onde a gente atribui o dom de nortear caminhos – achou que o equinócio seria um bom parâmetro para unificar o ritual. E, com uma jogada matemática, a data seria móvel e contemplaria todos os povos ao mesmo tempo. Coalizão do império?

Isso. No ano de 325, no Concílio de Niceia, ficou decidido: a Páscoa seria sempre no primeiro domingo depois da lua cheia na sequência do equinócio de março. E retroativamente tudo o mais se organizou: 7 dias antes seria o Domingo de Ramos, que inicia a semana santa. E 40 dias antes dele, a quarta-feira de cinzas, início oficial da quaresma. E imediatamente antes, os dias de Carnaval. Intrincado, né? Não à toa, precisou de uma reunião dos poderosos da época, espécie de G20, para estabelecer uma regra – que curiosamente funcionou. Obedecemos até hoje.

Essa complexidade que é o Brasil constrói um potente imaginário de erotismo

Obedecemos e transgredimos. Carnaval vem de carnis levale, a abstenção da carne. Como vimos no início, o Carnaval se transformou em homenagem à carne, em sentidos reais e metafóricos. Até o mercado entendeu que o excesso dá lucro.

E assim seguimos na dialética fundamental entre Carnaval e Quaresma, jorro e refluxo, Eros e Tânatos. O tempo da explosão mas também o tempo de recolhimento. Com a imagem de um homem vagando em jejum no deserto, se preparando para a travessia da transcendência. Tempo da gestação.

Parece que há milênios nos organizamos numa estrutura pendular que rege a dinâmica dos nossos impulsos mais ancestrais. Como a respiração, dentro e fora, para dentro e para fora.
Não sei se precisamos nos regrar por imperativos de sacrifício e contenção. Mas se conectar com as duas faces do fluxo, pulsar e pausar, extravasar e elaborar, talvez seja essencial.

A pergunta que eu queria deixar então, no início da nossa conversa aqui nesta coluna, é a seguinte: o que você quer gestar de valioso nesta quaresma?

Lembra: algo vai brotar e, se for atingido, com sorte renascerá no primeiro domingo depois da lua cheia que virá depois do dia em que o escuro da noite é do mesmo tamanho da luz do dia.

Boa quaresma.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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