Coluna da Maria Homem: Como tornar uma cadeira (e um voto) útil — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Como tornar uma cadeira (e um voto) útil

O que a eleição para prefeito na maior cidade da América Latina nos ensina? Que uma parte de nós resiste  a abandonar a idealização do líder forte, com autoridade e muito macho

04 de Outubro de 2024

Dia desses estive num debate — do tipo clássico, acadêmico — e o consenso era: nunca na história da humanidade as coisas mudaram tanto quanto agora. Somos testemunhas oculares de uma profunda transformação. Na forma de pensar, de se relacionar, de comunicar e, logo mais, até de trabalhar.

Mas o curioso é que, nesses momentos históricos decisivos, em vez de tirar as velhas roupas, porque estão apertadas e não nos servem mais, parece que ficamos muito angustiados, talvez no pânico de ficar nu na frente de todo mundo, e falamos: truco! Aí o colega, também agoniado, na mesma hora: seis! Truca em cima, dobra a aposta.

O que a eleição para prefeito na maior cidade da América Latina nos ensina? Aliás, não somente a eleição em São Paulo, mas várias disputas mundo afora. O que vemos se repetir?

Que uma parte de nós resiste bravamente a abandonar a idealização do líder forte, vencedor, com autoridade e muito macho.

Confundimos “força” com o que de fato é uma linguagem agressiva e grosseira, que aliás demoramos séculos para combinar que estava fora do jogo, num suado processo civilizador, como diria a vasta obra de Norbert Elias.

Confundimos autoridade com um paradigma autoritário, hierárquico, fetichizando imagens de antigas sociedades militarizadas e guerreiras. Imagens que podem ter uma versão mais laica, com o comandante supremo sendo um winner capitalista, ou seja, alguém que acumulou dinheiro. E não importa se fez isso roubando, mentindo, herdando ou aplicando golpes como, por exemplo, Donald Trump e tantos por aí no campo político. Nosso coração pensa (pois é, o coração também pensa, com identificações inconscientes): ele é milionário, ele é fodástico, ele sabe governar.

E, o mais curioso, a partir de agora meme eterno, confundimos “ser homem” com dar porrada.

Não tem coisa mais cafona e fora de época do que convocar a masculinidade de alguém como símbolo de potência

Quando um sujeito adulto, maior de idade, não incapaz, candidato a um cargo de liderança, ou seja, sujeito político no exercício pleno de seus direitos e deveres, diz para o outro “Você não é homem, disse que ia me bater e não teve coragem”, é porque tem algo de muito errado no sistema de vida que compartilhamos. E isso ainda seduzir muitas pessoas é altamente preocupante e prova de que ainda falta muito feijão com arroz no nosso sistema educacional e num letramento psicopolítico básico. Pois não tem coisa mais cafona e fora de época do que convocar a masculinidade de alguém como símbolo de potência. E muito menos baseada na força física.

Já não faz uns séculos que as “novas tecnologias” tornaram a força física praticamente irrelevante e que ela nos é indiferente para 99% das atividades que giram a roda da vida? Só é relevante a diferença entre homens e mulheres na hora da reprodução da vida, que ainda precisa de órgãos sexuais reprodutivos orgânicos. Por mais que queiramos a reprodução assexuada e asséptica dos laboratórios, ainda não conseguimos gestar uma nova vida a não ser num útero.

Para todo o restante das operações cruciais da vida, desde a invenção da máquina, é praticamente indiferente o sexo biológico ou o gênero subjetivo, social ou político da pessoa. Qualquer ser humano dirige um trator, um avião, uma cozinha, uma fralda, uma seringa, uma empresa, um parlamento. Quem não entendeu isso está muito atrasado.

Se na prática a gente ainda precisa da luta, e discutir cotas e representatividades, é outra história. É porque estamos no processo. Mas a ideia não precisaria mais ser discutida. No entanto, qual estratégia ainda assistimos no século 21? Acusações que giram em torno de ser homem, ser muito macho, ser mulherzinha, cat ladies, ser casada, ser solteirona, ter filho, não ter filho, ser sedutora, tirar o noivo da outra, etc. etc. Fazer isso é agir de má-fé. É fazer apelo a um imaginário sexista muito antigo e que parece ser difícil, para alguns, ultrapassar.

Agora, pior do que a convocação a um pavoneamento viril é a resposta imediata: uma cadeirada no provocante.

É sério, gente? Uma cidade que faz parte de uma megalópole, que concentra muitos milhões de pessoas, em que é difícil respirar, se locomover, que não tem trabalho para todos, muito menos trabalho bom e interessante, tudo meio precarizado mesmo. Que é suja e decadente em muitos pontos. Que tem problema de casa para todos e como se ocupa o solo. Que é violenta e cruel. Que você morre na fila de espera para fazer exame. Que professor toma bala de aluno na escola. Que tem uma desigualdade gritante, que maltrata a maioria, mata muitos e aprisiona os privilegiados assustados em clubes com grade de ouro. Que faz regras que não cumpre e vende emendas, desvios e outras mercadorias corruptas. Que tem e pode ter ainda muito mais dinheiro e não gasta nem bem nem com justiça esse dinheiro. Que tem rios viciados de escoamento de poder e de capital. Uma cidade com muitos, inúmeros problemas reais, dramáticos.

É sério que, na hora de sentar ao redor da mesa para debater reais ideias e planos para essa cidade, os machos decaídos ficam nesse papinho de quem bota o pau na mesa? Faça-me o favor. Eu tenho um filho (homem) para criar e estou bem angustiada com esse circo que está fazendo sucesso entre muitos que mal e mal têm pão para comer.

O que temos de melhor para fazer com uma cadeira? Quebrar na cara do outro?

Faça algo útil do seu voto. A única coisa que interessa é sentar numa cadeira e conversar ao redor de uma mesa com pessoas que possam sentir, pensar e agir. Com inteligência e conhecimento de causa.

Esse estilo é menos animado e demora muito mais. Sim, dá preguiça e estamos já cansados e irados. Mas é o único que funciona na realidade crua da vida.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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