Coluna do Marcello Dantas:Tribologia — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Tribologia

Foi-se o tempo em que Nova York, Londres, Paris e Los Angeles definiam o mindset do planeta. Hoje, pequenas vilas espalhadas pelo globo exploram formatos mais sustentáveis

05 de Maio de 2021

Tribologia é a ciência e a engenharia de superfícies interagentes em movimento relativo. Inclui o estudo e a aplicação dos princípios de fricção, lubrificação e desgaste. Altamente interdisciplinar, a tribologia combina diversos campos do conhecimento como física, química, ciência dos materiais, matemática, biologia e engenharia.

A pandemia prolongada nos obrigou a observar o esgotamento do nosso sistema civilizatório sob a perspectiva do desgaste e de sua latente ineficiência. O sistema globalizado baseado em centralidades metropolitanas e estruturado na hierarquia herdada dos tempos coloniais parece ter chegado ao fim. O mundo urge em criar modelos que respondam aos novos desafios e às mudanças de paradigma.

A concepção de tribologia poderia ser resignificada com uma etimologia que expanda a sua definição para além da engenharia. A tribologia pode também ser vista como o estudo das tribos. Se passarmos a dedicar um pouco de observação na estrutura de comunicação e organização social das tribos de povos originários, encontraremos muitas chaves para nos reinventar nesse novo tempo.

A primeira diluição é a relação centro-periferia. Centralidade invocava a ideia de que o mundo teria alguns poucos hubs onde as trocas reais ou simbólicas aconteceriam e que seriam repercutidas em todas as outras instâncias. Hoje, entendemos que não há como confiar na metrópole para a definição do eixo que nos transporta como civilização. A periferia, por sua vez, que antes refletia os processos da centralidade começou a inspirar novos desenhos de vida. Passamos a viver o desafio em que cada roda passa a ter seu próprio motor e cada uma gira em sua própria velocidade. A caixa de marchas e o eixo do diferencial não mais sincroniza as rotações. Este modelo que aceita que cada órbita produz seu próprio sol é algo que estimula um mundo profundamente novo.

Essas novas vilas são lugares excêntricos que estão inventando novos estilos de pensar cultura, identidade e relações humanas

Foi-se o tempo em que Nova York, Londres, Paris e Los Angeles definiam o mindset do planeta. Hoje, pequenas vilas espalhadas pelo globo estão explorando formatos mais sustentáveis, integrados à natureza, à saúde e à ancestralidade. Esses lugares inspiram mais que as antigas metrópoles, hoje arrasadas pelos seus modelos vulnerabilizados pela pandemia e desvalorizados pela possibilidade de nomadismo digital — algo inaugurado pelo trabalho remoto. Essas novas vilas são lugares excêntricos que estão inventando novos estilos de pensar cultura, identidade e relações humanas. Elas valorizam o vínculo com o território e provocam um sentimento essencialmente transnacional, que as distanciam dos projetos nacionalistas que têm levado países como o Brasil ao seu momento de mais profunda irrelevância. São locais como Tulum, no México; Bali, na Indonésia; Paarl, na África do Sul; e Taranaki, na Nova Zelândia. Uma nova geografia que conecta pontos por uma nova afinidade de harmonia entre corpo, mente e sociedade; entre natureza e o convívio entre espécies. São lugares onde ainda se pode buscar inspiração na arquitetura dos animais, no uso sensato de recursos naturais, no respeito à biodiversidade e à diversidade cultural de sociedades baseadas em modelos autossustentáveis de criação de bem-estar. Mais importante que o modelo de acumulação de riqueza a qualquer preço. O lucro se materializa no meio e não no fim.

Este movimento estabelece essa nova geografia não mais centralizada nos aeroportos e sim no desejo de um sentido de propósito na vida. Esse talvez seja o motor dessa nova era que começa a se desenhar. Um modelo de tribos, pluriculturais, mas com valores convergentes. Diante do fracasso dos modelos de nacionalismos extremados que se mostraram tragicamente incapazes, diante de desafios verdadeiros como a pandemia, ou do modelo corporativo globalizado que também se mostrou inábil em garantir segurança em momentos de crises profundas.

O paradoxo é a arquitetura em busca de uma cultura, é a estética definindo a ética. A tribologia antecedendo a antropologia

O curioso deste processo, é que ele funciona de forma invertida em relação aos padrões antropológicos que conhecemos. Normalmente, entendemos que a materialização de conceitos segue a manifestação de uma expressão cultural. Dessa expressão, surgem edificações, valores e reflexões que ganham forma física. Exatamente por estarmos vivendo um movimento invertido no qual é necessário criar uma sociedade de origens múltiplas, mas que se converte em realidade de forma muito rápida. O paradoxo é a arquitetura em busca de uma cultura, é a estética definindo a ética. A tribologia antecedendo a antropologia.

A partir da observação do modo como essas novas tribos fazem para garantir bem-estar e proteção e, acima de tudo, da capacidade criativa de florescerem neste novo contexto é que poderemos desenhar um novo tipo de colmeia, de ninho, de habitat da fertilidade e de integração harmônica. O estudo da fricção nos permite entender a importância da lubrificação nos meios dinâmicos que vivemos. A arqueologia prospectiva dirá não de onde viemos, mas para onde queremos ir. Talvez, esse seja o grande fruto positivo do processo intensificado pela pandemia e que provavelmente nunca mais voltará a ser como antes.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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