Significado especial — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Significado especial

Como curador, um dos desafios mais relevantes que tenho proposto a artistas é criarem arte que seja relevante não somente para humanos

25 de Agosto de 2021

A palavra “especial” vem do latim, specere, que originou também a palavra “espécie” – aparência, imagem visual, grupo de seres com aparentes traços comuns – tão especial é a característica de uma espécie.

A base de todos os problemas que estamos vivendo no mundo hoje é que nós, seres humanos, nos consideramos mais especiais. Somos indiferentes ao fato de que uma infinidade de outras 8,7 milhões de espécies habitam o mesmo planeta e que também precisam viver. Somos interdependentes, mas não nos atentamos a este fato.

Todos os dias, muitos de nós tomamos a decisão de se alimentar às custas da vida de uma outra espécie. Cada expansão econômica vem ao preço de uma invasão a algum outro ecossistema delicadamente estável. Isso não virá sem um preço a ser pago, mais cedo ou mais tarde. Ultimamente, tem sido bem cedo.

A visão de mundo antropocêntrica é responsável por muitos males sociais e ecológicos que hoje enfrentamos. Se antes a nossa diferença com animais ajudava a nos definirmos como humanos, agora a exclusão do animal – com base nessa mesma diferença – nos empobreceu e desumanizou.

Como curador, um dos desafios mais relevantes que tenho proposto a artistas ultimamente é criarem arte que seja relevante não somente para humanos, mas que seja capaz de se comunicar com alguma outra espécie. Ou ainda, que seja feita de forma colaborativa com abelhas, aranhas, micélios, pássaros, mamíferos, répteis, entre outros. Uma atitude proativa de reconhecer que talvez seja possível aprender algo desta fricção positiva entre espécies pode nos inspirar a pensar em um mundo mais sustentável e menos destruidor. Saber observar seres que têm uma arquitetura evoluída durante milhões de anos pode nos capacitar a fazer coisas melhores.

Se antes a nossa diferença com animais ajudava a nos definirmos como humanos, agora a exclusão do animal nos empobreceu e desumanizou

Apenas o ato de aceitar este desafio já é um reconhecimento importante. Assim como o silêncio dos aviões e carros durante a clausura da pandemia que nos despertou para a quantidade de seres que habitam regularmente nossas cidade e que não nos dávamos conta. Existe uma conversa que precisa ser iniciada.

As práticas entre espécies devem utilizar estratégias artísticas e participativas para estimular o diálogo e o debate, estabelecendo uma nova relação de poder que questiona a forma como vemos nossas interações com os outros seres.

As demais espécies têm servido por milênios como fonte, base e metáfora para todos os tipos de pensamento humano. Em torno de seus hábitos, construímos nossos mitos; em seus corpos, testamos nossos remédios; a partir de seus traços, nomeamos nossas virtudes e vícios. Sendo como nós, e ao contrário de nós, muitas vezes podemos nos ver melhor refletidos em suas vidas e sombras.

Mas quando foi a última vez que você bateu um papo com uma aranha?

Artistas como Tomás Sarraceno, Marlene Huissoud, Wolfgang Buttress, Cristina Iglesias, Celeste Boursier-Mougenot e Andy Goldsworthy têm pesquisado diferentes formas de colaborar criativamente com outros seres. Seja construindo arquitetura em colaboração com outros animais, seja criando processos naturais em que se constrói juntos uma forma, ou ainda, mais ambiciosamente, criar arte que pode ser vista e sentida por iguanas e pássaros. Elaborar sutis intervenções no habitat de outros seres sem ter uma clara intenção e estar aberto a abordar o inespecífico, como por exemplo a criação de um museu submarino com obras de artistas instaladas debaixo d’agua, que está sendo feito no México e nos Estados Unidos. Um museu que será prioritariamente ocupado por criaturas marítimas ao seu bel prazer.

Artistas como Tomás Sarraceno, Marlene Huissoud e Wolfgang Buttress têm pesquisado diferentes formas de colaborar criativamente com outros seres

Possivelmente, a obra matriz deste caminho na arte contemporânea tenha sido a performance seminal do artista alemão Joseph Beuys “I Like America, America likes Me”. América era um lobo selvagem que ficou trancado na galeria com Beuys durante cinco dias em 1974. O resultado dessas iniciativas pode ou não ter algum impacto na trajetória desses seres, mas com certeza nos tornará mais sensíveis, inteligentes e aptos a nos adaptarmos aos novos tempos que estão por nos desafiar. Precisamos ampliar nossa especificidade, nos capacitar a escutar e a criar para além do nosso “umbigo existencial”, que insinua que só quem pensa como nós de fato existe. Já é tempo de nos “Descartes-ar”.

Só sei que ainda nada sei o que o outro ser pensa, logo, quero saber.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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