Letrux — Tarada por letras — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Tarada por letras

Durante muito tempo me comuniquei com música. Sempre me utilizei de letras para falar algo que eu não estava conseguindo ou talvez nem quisesse com minhas palavras

10 de Novembro de 2021

Não sei como começou mas de repente na longa lista de atividades que eu faço, incluíram também instrumentista”, para minha vergonha e também a alheia. “Estamos aqui com a Letrux, que é atriz, cantora, compositora, escritora e instrumentista”. Ai, que nervoso. Me formei em teatro, abandonei a faculdade de letras, escrevo pra me achar e me perder, mas é na música que vibro grande e é através da música que pago minha vida. Mas não sou e nem serei instrumentista. Digo que não serei porque já era pra eu estar estudando e não estou, infelizmente. Meu parceiro gargalha da minha rápida digitação no teclado (sou impressionante mesmo) e diz que se eu praticasse tanto no piano, também poderia estar melhor. Mas quem disse? Brinco no violão e no piano, para que eu possa compor. Mas meu barato é letra. Melodia também, sem dúvida, mas o grande barato é letra, assumo.
Em criança, ficava me olhando no espelho do móvel bar do meu pai, lembra desse móvel dos anos 80? Móvel bar, eu amava. Fedia a cigarro e álcool, mas já criança eu talvez pressentia que meu futuro seria boêmio. Bethânia nas alturas e eu me olhando no espelho e ouvindo aquela voz de trovão: “É tão difícil olhar o mundo e ver o que ainda existe. Pois sem você meu mundo é diferente, minha alegria é triste”. Aquilo entrava no meu corpinho infantil de um jeito tão quente e fazia uma dança tão doida. Não disse pra mim que faria aquilo pra minha vida. Não tive arrepios da confirmação, nada disso. Até eu me tocar demorou um bocado, mas sem dúvida a fecundação estava feita.

Em criança, ficava me olhando no espelho do móvel bar do meu pai. Bethânia nas alturas e eu ouvindo aquela voz de trovão: ‘É tão difícil olhar o mundo e ver o que ainda existe’

“Fico besta quando me entendem”, essa frase genial da Hilda Hilst, que por acaso estou lendo a biografia, me causa uma sensação alargada com letras de música. Estou eu lá, bem de boa, na aparente tranquilidade do meu lar, talvez cozinhando, talvez sonhando acordada, quando de repente resolvo ouvir uma música. E aí pode ser uma de 30 anos atrás ou da semana passada. Se alguma frase me deixar besta, se alguma frase me entender (ou eu entender a frase? O ovo ou a galinha?), aí, meu Brasil brasileiro, não tem pra ninguém. Vem arrepio, vem comprovação, acordo, evidência, vem festa interior. Literatura também me causa isso. Um bom livro, um bom poema. Cinema também, sem dúvida. Mas música tem alguma magia além, porque envolve movimento do corpo. Ok, você pode ler ou ver uma série e querer dançar, mas é mais difícil, concordam? Mas uma música, uma letra de música faz seu corpo se mexer e ninguém nunca vai saber o preço disso. Aleluia!

Durante muito tempo me comuniquei com letras de música. Escrevia letras em caras, bilhetes, na parte de trás do caderno, depois no ICQ, no MSN, no SMS e por aí vai. Nos primórdios, sempre me utilizei de letras pra falar algo que eu não estava conseguindo ou talvez nem quisesse falar com minhas palavras. Eu queria aquela letra da música tal praquele momento tal.

Das poucas alegrias da pandemia, me aproximei mais de uma pessoa que eu já admirava muito, mas por conta do tempo insano da vida, nunca tínhamos conseguido estreitar laços. Leïlah Accioly é uma mulher inteligentíssima, hilária, com conhecimento sobre tudo, mente acelerada e curiosa. Começamos a trocar áudios, verdadeiros podcasts no início da pandemia. De cara percebi que Leïlah era das minhas em termo de letras. Tudo a gente pontuava com uma letra. Se alguém falava de uma treta de trabalho, a outra vinha com “Meu amor, disciplina é liberdade. Compaixão é fortaleza.” Se o drama era romântico, em algum momento do textão ou do audiozão, rolava “Não leve o personagem pra cama, pode acabar sendo fatal”. Um dia brinquei e disse que éramos taradas por letras. Leïlah, olhos e ouvidos de lince, adorou o nome e juntas criamos um programa, um podcast onde analisamos, fervemos e filosofamos sobre letras de músicas. Atuais, velhas, gringas, brasileiras. Não quero adivinhar o que a pessoa que fez estava pensando. Quando você lança uma música, ela é totalmente do mundo. A quantidade de mensagens que recebo dizendo: “Nossa, Letrux, aquela sua música que você fez pr’uma situação de vingança me deu tanta força”. E eu fico: “Que música? Que vingança?” Mas acho maravilhoso que pra cada um toque de um jeito. Essa possibilidade ampla de significados muito me agrada e quando lá no Taradas por Letras conversamos sobre as composições, é apenas mais uma de tantas perspectivas.

Há pessoas que estão há mais de anos com apenas um trecho específico de alguma letra de música na cabeça. Tenho fases disso, é insuportável

Amo música instrumental e há momentos que preciso dela ou até mesmo do silêncio. É tanta tara em letra que há situações que não posso ouvir letra alguma. Pra escrever esse texto, pra transar, pra estacionar um carro (coisa que não faço há 6 anos, mas lembro que na hora de procurar vaga e estacionar, se a música tinha letra, eu abaixava, doida). A letra sempre me rouba atenção. E tudo bem. Posso ser mais exigente e chata nesse aspecto, mas ao mesmo tempo estou também entregue a propostas como alguns amigues não estão tanto. Sou tão tarada em letra que o livro “Alucinações Musicais”, do Oliver Sacks, entrou na minha vida e me elucidou muitas coisas. Há pessoas que estão há mais de anos com apenas um trecho específico de alguma letra de música na cabeça. Acordam, dormem, vivem e pá, lá vem o trechinho. Tenho fases disso, é insuportável, quase Tourette. Já foi Roxette, mas já foi Rage Against The Machine. Quem convive comigo, sofre. Pode ser do nada, escovando os dentes ou no meio do silêncio de um filme e “Touch me now, I close my eyes and dream away”, falo em voz alta, sem conseguir me controlar. Mistérios neurológicos. Ou psicológicos? Ambos.

Gosto de encarar a vida como letrista, parece que quando faço uma letra organizo uma sensação, não que as emoções devam ser ajeitadas, mas no nível de nervosismo que estou com dois anos de pandemia e tudo voltando ao mesmo tempo agora, tenho me sentido bem quando consigo compor. Escrever uma letra. É raro, mas quando rola, não dói mais tanto como já doeu. Deve ser da idade, deve ser do prazer da realização em ter feito algo, fato tão raro em anos de impossibilidades. Ser uma tarada por letra não me tira apuro harmônico, tampouco a preocupação com acordes. Música é uma soma mágica, e eu me sinto num sonho quando seguro a cartola e tiro um coelho de dentro dela. É dom, é ofício, é disciplina, é prática. Agradeço aos assistentes que nem sabem que são, mas são: Rita Lee, Nina Simone, Caetano, Marina, All Green, Lhasa de Sela, Liniker, Karina Buhr entre tantos, que me ajudam a compor, e nessa dança biruta, conseguimos enfeitiçar plateia. E por vezes consigo até me enfeitiçar. Troço maluco.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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