Letrux -- O infinito não pode ser tão tatuado, gente — Gama Revista
COLUNA

Letrux

O infinito não pode ser tão tatuado, gente

Critico todas as minhas tatuagens, ao mesmo tempo que amo. A pele sempre me pareceu um papel e a eternidade sempre me pareceu uma brincadeira

13 de Outubro de 2021

“O infinito não pode ser tão tatuado, gente”, escrevi essa frase há mais de uma década. O facetruque, ops, Facebook, sempre me relembra dos meus escritos passados e eu ri com esse meu post antigo.

Sou uma pessoa tatuada. Gosto, é idiota, é uma besteira, uma bobagem, mas gosto. Faz parte de mim já. Rituais, fases, punições (rá!), transformações, símbolos, tudo envolve a chegada de uma nova tatuagem. Mas é engraçado perceber como nem sempre o que se eterniza na pele é o que se é. Ou o que se tem. Muitas vezes é justamente ao contrário. Várias pessoas com símbolos do infinito foram as pessoas mais instáveis e efêmeras que já conheci na minha vida.

Minha primeira tatuagem foi no morro do Borel. Minha prima comentou que um conhecido estava fazendo tatuagem, e lá fui eu com 18 anos recém completos fazer um símbolo, um tribal horroroso, algo como “amor eterno” (deusas me defendam) nas costas, quase na nuca. É pequeno, já pensei em cobrir, mas é tão trash que me afeiçoei. Talvez um dia cubra, talvez não, não há estabilidade num corpo que se tatua. Constante movimento imagético, ora cafona, ora esplêndido. É assim que sempre foi. Uma das minhas primeiras tatuagens foi uma tartaruga no ombro. Pergunte se sou lenta! Jamais! Meu pensamento tem uma velocidade atroz, por isso nem tomo café e preciso terminar o dia com CBC ou THC. A tartaruga foi feita justamente porque eu precisava de algo que desacelerasse. Funcionou? Claro que não, mas é um símbolo, é um desenho que toda vez que vou beijar o ombro num surto de carência ou necessidade de autoamor, beijo Dagoberto, minha tartaruga alojada no ombro direito. E tento pensar mais em slowmotion. Não é que funciona, mas pelo menos me cutuca.

Não há estabilidade num corpo que se tatua. Constante movimento imagético, ora cafona, ora esplêndido

Amo um homem que não tem nenhuma mísera tatuagem em seu belíssimo corpo. Não quis, não era a pira dele, é engraçado percorrer a metragem sem esbarrar em nenhuma insígnia. O corpo é o que é. O meu tem invenções. Um liquidificador com dois corações (“o amor é turbulento mas o resultado é uma vitamina”, eu dizia. Argh, eu era tão nova, bichinha, mas é a vida, é a vida. Em francês e em português, é sempre a vida. C’est la vie!), tenho uma mão com símbolo do reiki pra minha mãe, sete flechas pro caboclo do meu pai, saravá na costela, uma girafa na outra costela (quebrei uma caneta bic na boca enquanto sentia a dor), capricórnio na perna, um raiozinho vermelho tosco no joelho, eclipse em grego embaixo do peito (fiz num dia de eclipse, claro! não estava aguentando rasgar a cabeça de tanta fritação, daí pensei: “ah vou rasgar a pele então”, prazer e dor de mãozinhas dadas nessa aventura insana que é marcar o corpo pra sempre), uma lua vermelha no dedo médio da mão esquerda (acho que é a que mais recebe elogios, pela discrição, talvez. O mundo gosta e exige discrição. Tosco demais o mundo). Fiz um ovo também num dia engraçado (amo ovo), e nesse mesmo dia pedi pra tatuadora fazer um círculo na minha mão, queria sentir a dor na palma da mão, como seria? Pensei em Jesus, pensei no tempo de mudança da pele, pensei em nada, pensei no mar, e no avião que eu tinha que pegar dentro de duas horas: pronto, tenho uma bolinha na mão. “Mar em francês é mãe”, está tatuado no azul mais lindo no meu braço. Uma bola de cristal, tipo a do emoji, também foi feita. “Calma” entre colchetes também foi feita no meu pulso esquerdo, coitada. Esse dia foi o que mais quis matar alguém na vida. Pra não ser presa com 35 anos, fui sentir dor e escrever “calma” no pulso que ainda pulsa. Tudo besteira, tudo pontua uma fase, uma dinâmica. Critico todas as minhas tatuagens, ao mesmo tempo que amo. Acho engraçada a moda do OHM, gente que nunca tinha meditado começou a tatuar o símbolo do OHM. Estando com o símbolo já valia? Tatuar já era meditar? Gente que tem tatuado que crê em mil verdades mas é completamente fechado num axioma só? Tem também. A tatuagem é só um desejo, um holograma, mas a realidade é outra e são ultra cri-cris com mais de uma verdade. O símbolo do infinito extrapolou os limites do possível. Por onde eu olhava, lá estava ele: no pulso da menina, no braço do boyzinho, da nuca da senhora. Todos os corpos cientes da sua finitude, tentavam a grande impossibilidade física: imortalizar algo. A pele, um significado.

Quando criança, no jardim de infância, eu voltava pra casa com rabiscos de canetinha na pele. Não sei por que minha mãe ficou chocada quando comecei a me tatuar. Lembro claramente de fazer relógio de pulso de canetinha, umas patinhas de cachorro na perna, raios, nuvens, estrelinhas (juro que foi antes do hype da estrelinha da Gisele Bundchen, risos). A pele sempre me pareceu um papel, e a eternidade sempre me pareceu uma brincadeira. Tudo mentira, tudo caô. Minhas tatuagens são quase de chiclete de tão bobas. Um dia um tatuador me falou: “Tá na hora de fazer tatuagem de gente grande”, fiquei passada e nunca mais voltei, claro. Meu propósito, no caso, é justamente fazer pra não parecer gente grande. Grande já sou desde que nasci. O rabisco, as cores, as mentiras dos significados, tudo isso é pra me iludir (e iludir quem vê), uma grande farsa imagética que nos ajuda a criar diálogos e me faz ser a tia divertida entre as crianças, que sempre pedem pra ver, tocar. “Uma gilafa! Uma tataluga!” É um barato.

Muitas pessoas têm frases minhas tatuadas em suas peles. Fico encabulada e com calor na barriga. Há pessoas com meu rosto tatuado também, fico sem nem saber o que dizer

Muitas pessoas têm frases minhas tatuadas em suas peles. Fico encabulada e com calor na barriga. Há pessoas com meu rosto tatuado também, fico sem nem saber o que dizer e com calor no cu mesmo. Alguém achou de bom grado me eternizar na sua pele, uau, que absurdo! Até o último respiro do momento final, algo que escrevi estará ali, avizinhando essa despedida. Meu rosto (talvez já meio deformado pelas décadas de sol e vida – estou falando do rosto tatuado, risos) estará ali, indo embora junto com uma mente, um corpo que passeou neste planeta e agora vai embarcar para o fim final ou outra dimensão. No que você acredita? Eu sou do time da outra dimensão mas tenho dias tão cansada de fazer parte da única espécie que paga pra estar na Terra que penso que morrer também deve ser bom. Para apagar, desligar. Acabou, fim. Não há mais contas a serem pagas, Letícia. UAU, que alívio.

Há quem diga que quando se tatua, você já está pensando na próxima. Nossa sociedade excitada não se satisfaz ou é inerente ao ser humano querer um tiquinho mais? Minha relação com tatuagens envolve uma lógica tão individual e besta que já não ligo pra regra que “há que se ter número ímpar”. Gosto da jornada da dor e do resultado da beleza. Quem diz que não dói, fez a estrelinha da Gisele, sabe assim? A parada dói, o bagulho é louco. Agulhas com tintas estão entrando na sua pele, Brasil. Mas é isso, o resultado alegra e cria um elo, uma lembrança. Sei alguns acontecimentos do ano tal porque foi o ano da tatuagem tal. Serve como cronos. E ainda que algumas feias, sempre sinto que embelezam. Um beijo para Umberto Eco, que escreveu “História da Beleza” e “História da Feiúra”, e que eu calhei de nascer no mesmo dia que ele. Quantas vezes ainda vou ter que mostrar minhas tatuagens para olhos curiosos? Quantas vezes repetir a história? Aumentar um ponto? Diminuir? Fingir algo? Criar mirabolâncias? Quando eu tiver 82 anos vou ter uma tartaruga no ombro, como vai ser isso? Vai ser tranquilo, vai ser ridículo? E de resto, é como canta Gal Costa, em seu belíssimo disco da sua retomada, “Recanto”, na música que Caetano Veloso fez pra ela: “Tudo dói”: “Viver é um desastre que sucede a alguns. Nada temos sobre os não nenhuns.”

Tudo dói. Viver e tatuar. Sinônimos.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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