Coluna da Letrux: Abalos sísmicos — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Abalos sísmicos

Foi ontem o carnaval, foi ontem 2012, foi ontem minha quarta série, foi ontem que eu nasci? Não sei se é papo de quem está envelhecendo, preciso tirar a dúvida com meu sobrinho

04 de Novembro de 2020

Meu 2020 prometia. Mi planos, projetos, viagens internacionais, lançamento do segundo disco. A pandemia puxou meu tapete voador. Estava eu lá, bem Aladdin e de repente PÁ! A música continuou a mesma “a whole newwww worlllllld”. Um mundo novo mesmo, mas não o que eu sonhava. Nem você. Aliás, a tradução dessa música me soa curiosa porque em inglês seria “um mundo totalmente novo”, algo assim, certo? E a tradução Disney Brasil optou por “um mundo ideaaaaaal”. O mundo novo é o ideal? O ideal é novo? Reflito já sofrendo um pouco.

Ao mesmo tempo que não fiz nem um quinto das coisas que gostaria, há uma sensação esquisitíssima do ano ter passado rápido. Já é novembro, por exemplo. Não é que eu tenha piscado e agora cá estou: deuses e deusas sabem quantas lutas travei neste ano, mas há um sentimento de elasticidade do tempo. Foi ontem o carnaval, foi ontem 2012, foi ontem minha quarta série, foi ontem que eu nasci? Não sei se é papo de quem está envelhecendo, preciso tirar a dúvida com meu sobrinho Pedro que vai fazer dez anos já já. (Foi ontem que ele nasceu.) Quero saber se ele sentiu que este ano foi rápido ou demorado.

Uma coisa engraçada que acabou acontecendo foi que lancei três videoclipes totalmente na natureza, que é onde ainda temos alguma possibilidade de estar fora de casa. O primeiro clipe saiu junto com o álbum no dia que o mundo fechou, risos e choros: sexta-feira 13 de março, quem há de te esquecer? “Déjà-Vu Frenesi”, eu estou numa praia, depois estou num observatório de astronomia, Valongo, no centro do Rio, enfim, eu sozinha em situações de deslumbramento. Mas as ideias dos próximos clipes incluíam ter mais pessoas, corpos, abraços, danças. O primeiro clipe eu estava sozinha só para talvez reforçar uma imagem de “segundo disco da cantora Letrux” essas loucuras que inventam e vez ou outra a gente acaba caindo, e vez ou outra também há sentido, verdade seja dita e não só criticada.

A variação é uma inquietude importante para a arte

Pois: o segundo clipe “Eu Estou aos Prantos” foi o mais guerrilha, eu estava na serra do Rio com meu parceiro e mais um casal, e sozinhos fizemos tudo: figurino, luz, edição, câmera. Eu, delirando na natureza. De novo, mas dessa vez era um retrato da minha realidade. Engraçado que sempre quero estar na natureza, mas depois de bons meses no meio do mato bate a saudade de sentar num botecão com amizades, rir, bater na mesa e falar “mas aí é que tá”. A saudade da comida japonesa é algo que já nem sei explicar. Optei não comer nada cru durante a pandemia, leio muitas coisas sobre isso e prefiro assim. Saudade colossal.

Pois. O terceiro clipe veio nos meus últimos dias de serra, casal amigo estava numa serra ao lado e lá fui eu entrar em cachoeiras, acender fogueira, tudo com cuidado. Nesse clipe até têm outras pessoas que aparecem, mas todas com tecido na cara, máscaras protetoras para a vida real e que, na cena, cabiam perfeitamente.

Pensei: o próximo clipe não pode ser “Letícia delirando na natureza” de novo. Apesar d’eu amar tudo isso, é preciso variar. A variação é uma inquietude importante para a arte. Daí que uma turma bem boa que eu já conhecia me mandou uma ideia: queriam fazer um clipe pra mim de ilustração, tipo desenho animado. Criança anos 80 que fui, sempre delirei com a possibilidade em ser um desenho animado. Há muitas pessoas que me ilustram e me marcam, me enviam, e eu já fico mesmerizada porque me acho mais bonita em ilustrações do que na vida real. Rá! Mas você se ver como você via a She-ha (não estou entregando a idade, estou esfregando mesmo) na TV é muito emocionante.

Criança anos 80 que fui, sempre delirei com a possibilidade em ser um desenho animado. Ver a si como a She-ha na TV é muito emocionante

A música se chama “Abalos Sísmicos”, foi a única música que gravei chorando. Quando você chora, a voz fica embargada e fica difícil continuar, mas dependendo do tom, da letra, você pode usar a seu favor. Eu usei. É um belo registro vocal, sinto. Onze pessoas ultratalentosas fizeram quase 200 desenhos cada. Todo uma trabalheira absurda, mas em tempos tão modernos, é tão lindo pensar que foi um trabalho manual (ok, envolve computador depois, mas a princípio há o lápiz e o papel), demorou um bocado de meses pra ficar pronto. E ontem, pleno último dia de outubro, “Abalos Sísmicos” veio ao mundo e passa bem. Está no Youtube para você admirar. O país não colabora, mas o clipe passa bem. Assim como a gente talvez? Acho que as pessoas se identificam tanto com essa música porque é nosso lema: apesar de todo horror, a gente vai levando conforme dá. Até onde dá pé, não sei, já passei dessa parte, já estou ora boiando, ora mergulhando no fundo mesmo, pra variar posições e não ficar tão cansada.

Sei que ainda há o tapete voador, e sei que numa escala de comparações de dores e privilégios, eu ainda me sinto nesse tapete a maior parte do tempo. Ainda estou voando. Jurei que tinha caído, jurei que tinham puxado, mas talvez eu tenha aprendido a voar sem artifícios. DOISMIL&VINTE, que ano insano, repito pela rima e pela dificuldade em te resumir melhor. Tenho alguma ideia dos anos seguintes, temo as deep fakes, o avanço incontrolável da robótica, a inteligência artificial aniquilando milhares de empregos, temo as negações às mudanças climáticas, temo o avanço do neofascismo, enfim não é um cenário ideal para se mirar. O mundo novo não é o ideal, Aladdin. Mas não gostaria de terminar esse texto de maneira copo vazio. Não sei se é porque é início de mês, minhas duas avós seguem vivas e lúcidas, o clipe estreou e eu virei um desenho animado, enfim, não sei o que é, mas me aproveitem. Estou metade do copo cheia. Hoje estou acreditando na força para conseguir. Boa sorte pra gente. Com muitos abalos no caminho, mas conseguiremos.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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