Coluna do Leandro Sarmatz: Verde e amarelo — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Pra não dizer que não falei das cores

Cada vez mais o verde e amarelo se parece com aquelas estátuas de mercadores de escravos e de políticos genocidas que vêm sendo derrubadas na Europa

10 de Maio de 2021

Pura coincidência, os dois lados da família aportaram no mesmo ano, 1929. Do lado paterno, vieram de algum lugar perto de Vilna, na Lituânia, de uma daquelas pequenas aldeias lamacentas que aparecem em filmes como “Yentl” (1983) e “O Violinista no Telhado” (1971). Do materno, russos que estavam há pouco mais de uma década desastrosa na Inglaterra – a onda de imigrantes do Leste que viviam apinhados em cortiços do East End, com suas barbas hirsutas, a ortodoxia religiosa e o desconhecimento da língua nacional, desagradava a bem situada classe média judaica britânica. Mas foi a doença respiratória do pai da minha avó que o fez sonhar com ares mais tropicais, longe do fog londrino. Tiveram muita sorte: poucos anos depois perderam totalmente o contato com irmãos, primos e amigos que permaneceram na Europa. Hitler avançava por todos os lados. Foram aniquilados em suas próprias casas ou mandados a campos de concentração.

Aqui, aos poucos, se abrasileiraram. A música popular em plena era do rádio, a informalidade nas relações sociais – até o antissemitismo aqui parecia diferente — e a seleção brasileira de futebol fizeram o seu trabalho. Eram cidadãos do novo mundo. Gente novinha em folha. Aos poucos foram deixando para trás o medo, a língua quase secreta com que se comunicavam (uma variante do alemão escrita com o alfabeto hebraico), o fervor religioso. Aqui era o Brasil, aqui era verde e amarelo.

Essas cores já nos definiram. A primeira Copa do Mundo que me lembro bem foi a de 1982. Havia um álbum com figurinhas que vinham com o chiclete Ping-Pong. Eu comprava um punhado de chicletes todo santo dia. Quando a Copa terminou eu fui direto para o dentista: estava crivado de cáries. (O dentista, aparentado nosso, era sobrinho do grande ator José Lewgoy, que no ano anterior havia filmado “Fitzcarraldo” (19), de Werner Herzog, em plena Amazônia.)

Desde 2013 o verde e amarelo tem o poder de evocar as camisas negras fascistas e as suásticas nos braços das multidões nazistas

Mas tergiverso. O fato é que foi nessa Copa que ganhei minha primeira camisa da seleção brasileira. Não era a “oficial”, porque cara demais, mas uma versão mais acessível para crianças à disposição nas prateleiras do maior supermercado da cidade. Minha vida, nesse período, se resumia a duas cores: o azul do uniforme da escola (turno da manhã) e o amarelo canário a partir da hora do almoço. O mesmo com os outros moleques da minha rua. Durante aquela Copa, em plenos estertores da ditadura, todo mundo usava verde e amarelo. Era como uma Semana da Pátria interminável como a da primeira infância, quando vínhamos da escola com pequenos cataventos de papel com as duas cores. Poucos anos antes da Copa, com uns seis anos, levei uma bruta reprimenda paterna porque estraguei por mero capricho, em plena rua, o catavento recém-recebido no 7 de setembro. Havia no nosso prédio um major do Exército, vai que ele denuncia meu pai por comportamento antipatriótico? Era 1979, o major estava sempre com a cara fechada e seus filhos passaram a me atormentar a partir do momento em que haviam descoberto minhas origens. “Judeuzinho filho da puta”, diziam. Há nas crianças um lado essencialmente mau. Pensar o contrário disso é o grande erro de Rousseau.

Desde 2013 o verde e amarelo, para mim e para muitas pessoas do meu círculo, tem o poder de evocar as camisas negras fascistas e as suásticas nos braços das multidões nazistas. Não acho que seja exagero. Aquelas pessoas que, na Avenida Paulista ou na orla de Copacabana – valentões anabolizados, senhorinhas e homens grisalhos, quase todos brancos –, pedem a volta da ditadura, clamam por intervenção no STF e invocam a figura do presidente como um messias reacionário de classe-média, costumam ostentar a camisa da seleção brasileira e usar o verde e amarelo como linguagem. São cores que ganharam um peso político intolerável para muitos de nós. Representam um Brasil que, ingênuos, achávamos que tinha sido deixado para trás: autoritário, retrógrado, racista. O Brasil de 40 ou 50 anos atrás.

Mas eu não me engano. Ao longo do período democrático, o verde e amarelo como arma política ficou apenas adormecido. Esteve restrito à pátria de chuteiras. Era algo festivo, essencialmente popular, portado com certo orgulho pelos torcedores da seleção. Mas nunca se tratou de uma combinação ingênua. Que tenha escancarado seu vezo autoritário e excludente nos últimos anos, é parte da sua trajetória.

Já na década de 1970 as cores representavam tudo menos alegria e respeito

Como sempre, a história do Brasil é cíclica (tudo sempre tem seu retorno do recalcado) e centrífuga (movemo-nos em direção contrária ao eixo de rotação do planeta). Gerações anteriores tiveram que lidar com a patriotada dos torturadores da Copa de 1970. Já naquela época as cores representavam tudo menos alegria e respeito, ao menos para quem estava sendo sufocado pelos antecessores diretos de Bolsonaro e Mourão.

Meus amigos que gostam de futebol andam se perguntando como irão retomar o verde e amarelo quando “tudo isso” passar. Eu adoraria ter uma resposta otimista para eles. Não vejo como retomar algo tão marcadamente pavoroso e carregado. Porque cada vez mais o verde e amarelo se parece com aquelas estátuas de mercadores de escravos e de políticos genocidas que vêm sendo derrubadas na Europa. Elas simbolizam o pior do que já foi feito em nome de uma causa ou um país. São a marca da nossa barbárie.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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