Para que serve um menu degustação? — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Para que serve um menu degustação?

Experiência hedonista, intelectual, de deslocamento de tempo, de narcisismo, de escapismo? Um pouco de tudo. E de sabor, claro, como provam os restaurantes Pacato (BH), 31 e Maní (SP)

27 de Maio de 2022

Para que serve um menu degustação? Uma experiência baseada no prazer de quem vai ao restaurante? Algo criado para o puro deleite de quem pode pagar? Um exercício de virtuosismo de chefs e de vitrine para ingredientes e técnicas? Uma experiência intelectual, de reflexão sobre os limites e possibilidades da comida? Ou, ainda, uma falta de vergonha frente às notícias de inflação e aumento da fome?

Eu arriscaria dizer que é um pouco disso tudo. E, começando pelo fim, é um desafio imenso trabalhar com gastronomia, abraçar a sofisticação e a inovação tão perseguidas e celebradas na área, e viver em um momento e em um lugar de tanta desigualdade social. É uma questão sem resposta, embora haja iniciativas que tentam combater o problema. Se como jornalista da área eu sofro com esse paradoxo, imagino como ficam os chefs. É dessa angústia, imagino, que saem programas tão incríveis como a Quebrada Alimentada, de Rodrigo Oliveira; o Reffetorio Gastromotiva, no Rio, de David Hertz e Massimo Bottura; o jantar de Paola Carosella para pessoas em situação de rua na Casa do Povo, em São Paulo. É uma questão sem resposta, repito, mas a falta de resposta nos fará abandonar parte da nossa cultura?

É um desafio imenso abraçar a sofisticação e a inovação tão perseguidas na gastronomia, e viver em um momento e lugar de tanta desigualdade social

Deixo aqui a pulga (elefante?) atrás da orelha e parto para as outras hipóteses que justificam o menu degustação. Já faz uns dez anos que li o decreto de sua morte, no entanto, novos menus continuam surgindo e nos fazendo pensar. Conto aqui sobre os três que provei nos últimos meses e seguem me provocando.

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Antes de começar, no entanto, digo que não sou iniciante na área e já há pelo menos 15 anos venho provando menus em etapas, seja como pessoa física ou jurídica. As experiências nunca passam batidas e envolvem uma série de sentimentos como surpresa (“Meu Deus, isso é um rabanete!”), frustração (“Pra que 11 etapas? Bastava um pratão desse aqui que foi o que eu mais gostei mas tem o tamanho de uma colher de café”), aprendizado (“Não sabia que se comia esse tipo de inseto, tem certeza que não é venenoso?”), encantamento (“Pensei que era cenário mas era sobremesa“). Fazer um menu pode ser como assistir a um filme – já me falaram “Aproveite o show” ao entrar no salão –, como se descolar do tempo. Pode ser também surreal e delicioso ao mesmo tempo, como quando fui ao lendário Schwa, de Chicago, e vi os mesmos cozinheiros que prepararam um curry em formato de jardim zen dançarem mascarados e possivelmente doidos de ácido em volta do salão.

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Em São Paulo, o 31, restaurante comandado pelo jovem chef Raphael Raphael, serve pratos feitos com ingredientes locais sazonais à base de vegetais – é vegetariano, mas não vegano. Local e sazonal são dois conceitos lindos mas igualmente desgastados por geral que entendeu que era legal surfar na onda da correção. Mas, neste caso, eram literais, a exemplo do cogumelão selvagem encontrado em Parelheiros que vai à brasa e é servido apenas com flor de sal. Esses ingredientes vêm de associações quilombolas como a Terra Viva e do Instituto de Agroecologia.

Menu degustação do restaurante 31, em São Paulo (SP).  Gabriela Queiro/Divulgação

Fui ao 31 curiosa mas desconfiada da proposta. Lembrei da crítica de Pete Wells, o implacável (e maravilhoso) crítico gastronômico do New York Times, sobre o Eleven Madison Avenue quando o chef Daniel Humm tirou todas as carnes do menu. O problema, segundo Wells, é que ele tratou os legumes como carnes: em vez de salientar sutilezas, tentou amplificar tudo e, pior ainda, fez com que vegetais se fingissem de carne. Era técnica demais, simulacro de mais, caldo fermentado demais.

No 31, o oposto. Ali é tecnologia de menos: Vieira só tem uma pequena churrasqueira e um cooktop elétrico; nem forno, nem gás. Os caldos fermentados estão presentes (como o aroma do ambiente na entrada antecipava), mas a ideia é apenas dar mais uma camada de sabor, e não causar uma explosão no seu paladar. Cada vegetal mostra seu gosto real: o milho assado com mel, o tartar de batata yacon, o maravilhoso tupinambo com manteiga de amburana. Por 16 vezes, a cada vez que o garçom voltava à mesa, uma interpretação delicada de um sabor mais próximo da natureza.

Ao fim do menu, Vieira veio à mesa para se apresentar. Ele contou um pouco da sua trajetória (grandes restaurantes brasileiros como Maní e D.O.M., uma passagem pelo Açougue – o que me fez gargalhar, do açougue para bem longe dele – e pelo Blue Hill Farms, do chef Dan Barber, conhecido internacionalmente como um mago do sazonal), e revelou que não é vegetariano. “Mas eu acredito no futuro do vegetal. A proteína animal não funciona. Para mim, é um desafio pessoal”, afirmou. Quem paga (pouco em comparação a qualquer outro menu, de R$ 140 a R$ 160) para sentar na arquibancada e assistir a esse desafio pode acabar se emocionando e se convertendo à crença de Vieira: eu saí dali acreditando também no futuro do vegetal.

Ainda na abordagem do local, o Pacato, de Belo Horizonte, faz uma ode à cozinha mineira usando os processos mais high techs da alta gastronomia com ingredientes tradicionais e corriqueiros como a couve, o feijão, o quiabo e o jiló; e cortes e partes pouco nobre de animais, como a asa de frango e o pé de porco. Caio Soter, o autor, que participou do reality da TV Globo “Mestre do Sabor” e chefiou casas em BH como a Alma Cozinha, além de um açougue, mergulha na tradição local para redesenhar receitas como o angu, o tutu, o creme de milho.

Vaca Atolada, Pacato (BH).  brejo.co/Divulgação

É vitrine, mas é resgate também, é dar aos ingredientes outras possibilidades. E é feliz pois ainda provoca prazer, como provam o frango assado com purê de cenoura, e a vaca atolada com manteiga de garrafa e agrião do menu que provei no fim de 2021. O primeiro faz justiça ao peito de frango como instituição: mostra como pode ser suculento e ter até capa crocante. O segundo é pura delícia e técnica, a estrela do menu. Mas há ainda invencionices que dão choque e surpresa, algo que se espera quando se desembolsa centenas de reais pela experiência de um menu como a ostra de frango; a telha de feijão branco com vinagrete fradinho e espuma de tutu e pó de feijoada.

Menus podem ainda apontar para o passado e o futuro, e nos ajudar a refletir sobre quem somos e o que levamos conosco

O que me leva ao novo menu do premiadíssimo Maní, que é o mais ambicioso de todos porque abraça a culinária brasileira inteira: é Brasil de norte a sul do país, com ingredientes e receitas de todas as regiões, um local-expandido. É mais intelectual que prazeroso em muitos momentos; é virtuoso e fruto de muita pesquisa, pois nasceu de um curso que os chefs Helena Rizzo e Willem Vandeven fizeram sobre a gastronomia e o modernismo brasileiro. Partindo das ideias de Mario de Andrade, Rizzo diz que pensou em “deglutir, assimilar o próprio Brasil para poder se abrasileirar”.

Percebi ali naquele menu a minha infância em Fortaleza, com um carapau e banana, que era também indígena, porque usava a técnica de cocção de pirão ancestral com a farinha uarini. Conheci também uma abordagem completamente alienígena da feijoada, uma desconstrução molecular. Isso dá um nó danado na cabeça quando se prova pela primeira vez: esferas que explodem num sabor doméstico. Por que a gente gosta tanto de se reconhecer?

Feijoada, Maní (SP).  Gui Galembeck/Divulgação

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Esses três menus não respondem à pergunta sem resposta, mas apontam para o passado e o futuro, e nos ajudam a refletir sobre quem somos e o que levamos conosco no decorrer de nossas vidas. Talvez seja esse o papel de um menu também: além de todas as hipóteses do primeiro parágrafo, ser um exercício de autoconhecimento e, por que não, de narcisismo.

*O menu do Pacato custa R$ 280,60 e a harmonização com vinhos R$ 210,60. O do Maní custa R$ 580 e a harmonização com vinhos orgânicos custa R$ 520

Saca essa rolha

DA CARTA DO MANÍ

Parte da harmonização dos menus do Maní, o Cave Amadeu Brut é elegante e sequíssima. Vai do brinde ao parto principal com muita segurança e é capaz de agradar dos modernos aos conservadores.

DO 31
O premiado Era dos Ventos Clarete é um naturalzão versátil (segurou o menu inteiro), com acidez boa e aquele azedinho de fruta vermelha e levedura; divertido e agradável.

DO PACATO
O Cabernet Sauvignon Polkura La Gota 2018 é tão leve e divertido que você vai suspeitar que é feito de Cabernet Sauvignon mesmo: vale até para um dia mais quente, para comidas mais leves, e para tomar sozinho. Se preferir um branco, também no pacato, prove o Somontes Colheita Branco Dão DOC 2020, que tem 60% da maravilhosa Encruzado, uma uva que é a mais linda combinação de untuosidade e acidez.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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