No vinho, o futuro pode estar no passado — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

No vinho, o futuro pode estar no passado

Desprezadas no passado, as uvas criollas nascidas na Argentina oferecem diversidade de sabor e uma resposta ao contexto de aquecimento global

27 de Janeiro de 2023

No mundo da comida e da bebida, o futuro está no passado. Nos últimos anos, nos voltamos a técnicas ancestrais de panificação, ao mundo da fermentação, à valorização do que é natural e não industrializado. A palavra da vez é resgate. Na Gama, já falamos dos milhos e outros grãos criollos, que desprezados pela indústria, agora têm sua produção retomada por quem se preocupa com meio ambiente e identidade.

A valorização do que é local também foi apontada como tendência do futuro da comida pela revista. E não falamos apenas de comprar o que é feito na sua quadra e vendido pelo pequeno comerciante na esquina, mas o que é próprio de cada lugar, o que é indígena, autóctone, nativo. Ou o que, por influência externa, acabou se transformando em algo do lugar.

Essa é também a história das uvas criollas, especialmente a das argentinas, que já foram desprezadas pela indústria por darem vinhos de cor pouco intensa ou por serem mais “duras” no paladar, e hoje são vistas como uma nova (velha) fronteira a ser desbravada. Melhor, já está sendo e nós podemos provar em inúmeros rótulos bem feitos por pequenos produtores.

Os vinhos finos que bebemos, na esmagadora maioria, são feitos de uvas viníferas européias (Cabernet Sauvignon, Merlot, etc.). O vinho de mesa, colonial, de garrafão (sabe o Sangue de Boi?), é feito com uvas americanas (Isabel, Niágara, etc.). Vale a ressalva de que há muitos produtores de vinhos naturais vinificando essas variedades com mais cuidado e chegando a vinhos mais interessantes.

Já as criollas são variedades de uva que se formaram no território americano por cruzamentos entre europeias trazidas pelos colonizadores espanhóis. Algumas, são ainda mais “locais”, porque vêm do cruzamento de europeias com outras criollas, e até de criollas com criollas. Assim, nasceram o Torrontés Riojano (fruto da união de Listán Prieto e Moscatel de Alexandria), a Criolla Grande, a Cereza, a Moscatel Rosado e a Pedro Giménez, entre outras mais de 50 variedades que ainda estão sendo estudadas e identificadas pelo Instituto de Tecnologia Agropecuária da Argentina (INTA), espécie de Embrapa do vizinho.

Com o aquecimento global e a iminência do desaparecimento de variedades mais delicadas, são as criollas que vão resistir

A boa notícia é que, enquanto uns estudam, outros produzem. Pequenos vinhateiros argentinos já entenderam o potencial dessas uvas criollas e já colocaram no mercado vinhos deliciosos feitos com elas. Talvez você até já tenha provado algum, mas não sabia desse storytelling todo (veja abaixo algumas dicas de rótulos). E vale contar também que existe uma criolla que, apesar do nome, não é argentina, mas espanhola, a Criolla Chica (ou Listán Prieto, nascida nas Canárias), mas que adaptou-se tão bem na América do Sul que de alguma maneira virou chilena (como País), argentina (Criolla Chica), mexicana (Misión) e norte-americana (Mission).

Mas por que tudo isso agora? Talvez seja um sinal do tempo. Por terem nascido em território argentino, elas se adaptam melhor ao seu terroir e as dificuldades e desafios que aquela combinação de relevo, clima e solo apresentam, especialmente nos dias de hoje; são mais resilientes para usar um adjetivo da moda. É justamente por isso que a premiada sommelière argentina Paz Levinson declara que elas são “as uvas do passado [cultivadas antes dessa massificação das mais ‘nobres’ uvas europeias], mas também as do futuro”: com o aquecimento global e a iminência do desaparecimento de variedades mais delicadas, são elas que vão resistir. No fim de 2022, Levinson promoveu uma degustação no país em que alguns dos melhores rótulos eram feitos de variedades criollas.

Gabriela Monteleone e seu livro “Conversas Acerca do Vinho”, editado em 2022.  Divulgação

Aqui no Brasil, a sommelière Gabriela Monteleone escreve bem sobre essas uvas em seu “Conversas Acerca do Vinho”, livro editado em 2022 que traz reportagem e entrevistas com pequenos produtores preocupados em fazer do vinho um produto de ética e de preocupação com o meio ambiente. Ela conta que hoje essas variedades resistentes (ao clima e a pragas também) são também muito produtivas. E, geralmente, na vitivinicultura, o que se quer é conter o rendimento para dar mais qualidade à uva. “No entanto, quando os vinhateiros se dedicam à qualidade, aceitando rendimentos mais baixos e atenção ao vinhedo, essas uvas são base para vinhos joviais e de um aroma diferente”, escreve.

O mundo oferece sabores demais para que nos rendamos a uma monotonia de paladar

Mas lembra que nem tudo são flores e vinhos frescos: “Importantíssimo registrar aqui que há uma realidade pouco falada na produção de vinhos em todo o mundo. Quando há uma grande discrepância social, fica muito mais desafiador definir os caminhos e traçar estratégias. Na América do Sul, incluindo o Brasil, houve muitos vinhateiros que arrancaram milhares de hectares de vinhedos de variedades criollas, nativas, americanas, híbridas. Aconselhados por credores, oprimidos por suas situações financeiras, acabam por se render a modismos, sem entender o potencial da diversidade de variedades”.

Tenho cá para mim que a coisa mudou um pouco de figura. Com a crise climática, talvez seja o meio ambiente que dite que uvas serão produzidas. Pode ser também que os pequenos produtores ganhem força e consigam mostrar ao mundo que ter à disposição uma real diversidade de diferentes origens em uma prateleira de vinho possibilita muito mais descobertas. Quanto mais provo, menos acho que faz sentido ter uma pequena família de uvas nobres (Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot, Pinot Noir, etc.) e que devem ser objeto de desejo. A real é que o mundo oferece sabores demais para que nos rendamos a uma monotonia de paladar.

Saca essa rolha

PARA CONHECER AS CRIOLLAS NA TAÇA
Cara Sucia Cereza, leve e refrescante como um suco de cereja; Rocamadre Criolla, com notas de fruta vermelha ácida e toque de fermentação (pão de levain); e Criolla Argentina Moscatel Rosado Niven, floral e untuoso.

 Reprodução

PARA LER MAIS E REFLETIR SOBRE ELAS
O livro da sommelière Gabriela Monteleone, head sommelier do grupo D.O.M., é fiel ao título “Conversas Acerca do Vinho” ao trazer a opinião de pequenos produtores de diversos países que acreditam na produção como algo sustentável e eticamente correto. Talvez assuste os não iniciados num primeiro momento, mas traz explicações mais básicas ao longo da conversa aprofundada. Vale a pena para aprender mais sobre o futuro do vinho e refletir sobre caminhos alternativos.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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