O buraco é mais embaixo — Gama Revista
COLUNA

Francisco Brito Cruz

O buraco é mais embaixo

Nossa vida acontece na internet e em plataformas digitais, as regras que elas criam e os sistemas que as aplicam fazem parte invisível do nosso cotidiano

20 de Janeiro de 2025

O ano de 2025 começou com o mundo sintonizado em um vídeo publicado por Mark Zuckerberg, CEO da Meta (controladora do Instagram, WhatsApp e Facebook). Minha primeira coluna na Gama não poderia ser sobre outro assunto. A intenção aqui é comentar um pouco como a guinada trumpista do bilionário atinge a segurança de todos nós, que usamos seus serviços.

Sobre os anúncios, os jornais brasileiros repercutiram da seguinte forma: a Folha estampou na capa a manchete “Meta elimina checagem de fatos e critica tribunais da América Latina”; o Estadão, por sua vez, “Dono do Facebook se rende a Trump e tira freio a fake news”. O destaque nas notícias e colunas foi de que Zuckerberg ia afrouxar o “combate às fake news” e que ele acusava as organizações de checagem de fatos – que até então eram parceiras de sua empresa – de serem enviesadas, encerrando os programas que apoiavam tais entidades e utilizavam as informações por elas produzidas. Acusação que não foi acompanhada de evidência alguma, diga-se.

Lógico que essa é uma parte relevante do que disse o dono da Meta. Faz sentido se preocupar com isso. Porém, uma análise sobre seu pronunciamento e a recente entrevista que deu ao podcast de Joe Rogan (comunicador dos EUA com audiência gigante em plataformas) indica que o buraco é mais embaixo.

Uma parte importante da internet vai ficar pior e mais violenta, e nem mais liberdade de expressão teremos de verdade

E não só do ponto de vista político, até porque esse também já foi devidamente comentado. O que vemos é aderência à máquina musk-trumpista visando benevolência de agências governamentais, uma possível nova “diplomacia digital” (com carta de princípios derivada dos tweets de Elon Musk) para enfrentar a regulação europeia e os tribunais brasileiros, uma defesa extrema da proteção à liberdade de expressão que autoriza a violência online.

O buraco é mais embaixo, pois estão em risco a segurança de mais de 3 bilhões de pessoas no mundo. É evidente que seu anúncio não é unicamente mirado no combate à “desinformação”.

No podcast, Zuckerberg especificou que vai desligar ou afrouxar sistemas de detecção automática de publicações para o que considera que “passou da conta”, como naquelas que antes poderiam ser enquadradas como “discurso de ódio” pela plataforma. Ainda, que vai “simplificar” essas regras – o que já sabemos que significa destruir a proteção que a sua empresa dava a uma série de grupos marginalizados (como em mudança já ocorrida nessas regras sobre discurso violento contra as LGBTQIAP+, que permitiu que pessoas pertencentes à essa população pudessem ser chamadas de “doentes mentais”).

Mexer nesses sistemas e regras pode mudar diretamente a experiência de qualquer pessoa nas plataformas. Conforme a própria Meta, quase 3 milhões de postagens são removidas por mês por configurarem discurso de ódio perante suas regras. Dessas, por volta de 95% são encontradas por sistemas automáticos desenvolvidos pela própria Meta, como aqueles que detectam linguagem violenta. O que a declaração de Zuckerberg significa perante esses números? Que esse sistema de saneamento de seus produtos abrirá as comportas da violência. Isso se ficarmos só em “discurso de ódio”, apenas um dos vários alvos do trumpismo contrário ao “politicamente incorreto”.

Em um post no Linkedin, a professora Daphne Keller, da Universidade de Stanford, escreveu que teme “a onda real de abusos desencadeada contra essas pessoas e os danos offline — incluindo violência física — que inevitavelmente virão”. Em jogo está como vai ser a vida das pessoas que usam esses serviços, sua capacidade de expressão livre tanto quanto à daquelas que escolhem ser violentas na internet. Ou não achamos que os alvos preferenciais de violência na internet não passarão a pensar duas vezes antes de dizer o que pensam nas plataformas da Meta a partir de agora?

Nossa vida acontece na internet e em plataformas digitais, as regras que elas criam e os sistemas que as aplicam fazem parte invisível do nosso cotidiano. A conversa sobre o que está acontecendo precisa ver a desinformação como ponto de partida para falar sobre o quadro integral, não como linha de chegada: uma parte importante da internet vai ficar pior e mais violenta, e nem mais liberdade de expressão teremos de verdade, no todo.

Francisco Brito Cruz é advogado e professor de direito do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), com foco em regulação e políticas digitais. Fez seu mestrado e doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Fundou e dirigiu o InternetLab, centro de pesquisa no tema.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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