Um ataque cardíaco no coração de São Paulo — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Um ataque cardíaco no coração de São Paulo

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre a zona rural da avenida Paulista, uma foto do ex nas redes sociais, resoluções da Organização Pessoal da Saúde e uma viagem aérea com Timothy Leary

06 de Setembro de 2021

Dizem que a Paulista é o coração de São Paulo/ eu digo que é o ataque cardíaco

Miró da Muribeca, 1987
Antologia Profética

A passagem de gado pela avenida Paulista foi proibida logo após sua inauguração, em 1891.

Mas certas leis não pegam mesmo.

Não era possível aceitar que a primeira via asfaltada da cidade, símbolo de civilidade, progresso da indústria e riqueza do café, com seus palacetes aristocráticos distantes das enchentes que assolavam o centro, insistisse em cenas campesinas.

Isso vinha sendo respeitado até recentemente.

Não por coincidência, a zona rural em que o logradouro se meteu começou com um pato: o enorme pato amarelo da Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, abriu caminho pra volta dos rebanhos.

Inflado diante da sua sede – aquele prédio em formato de megarrampa de skate e ironicamente situado no número 1313 da própria Paulista –, o pet dos golpistas escancarou a porteira da fazenda dos animais.

Deu no que deu, passou a boiada.

O povo marcado, ê, povo feliz prepara neste 7 de Setembro mais uma manifestação entre a Consolação (cada vez mais difícil) e o Paraíso (perdido há tempos). Em vez do flautista de Hamelin, segue bovinamente o tocador de berrante do Planalto.

O efeito manada promete arrastar uma multidão em apoio à gasolina a 7 reais, ao negacionismo antivacina, à inflação com estagnação econômica, à república das milícias, à crise permanente entre os Três Poderes, à bandeira vermelha na conta de luz e ao recorde de desemprego.

A esperança é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Não seria a primeira vez que a Anvisa se meteria entre camisas da seleção brasileira de futebol pra defender o país. Com uma vantagem: além do coronavírus e da falsidade ideológica, seus agentes atuariam contra o mal da vaca louca e do admirável gado novo.

(É injusto que apenas argentinos sejam punidos por não respeitar as regras do Brasil.)

O poeta pernambucano Miró da Muribeca sabia do que falava quando escreveu os versos de “Marca Passo”. Ele morou oito anos na capital paulista, o bastante pra sacar que o melhor e o pior da cidade às vezes estão no mesmo lugar.

Pra curar amor platônico/ só uma trepada homérica

Eduardo Kac, 1981

Ninguém resiste a espiar foto de ex nas redes sociais. De ex-presidente, digo.

A gente sabe que não devia fazer isso, até pagamos terapia pra lembrar disso semanalmente, mas não tem jeito. Por um lado, todas as lembranças dos bons momentos, aquelas viagens pra aproveitar o dólar baixo e tal. Ele era o cara. Por outro, a traição e o final de relacionamento traumático.

Desencantado da vida, o país fez bobagem.

Pra afogar as mágoas, acabou nos braços do primeiro cafajeste que apareceu. Quem nunca? Como todo cafajeste, jurava ser diferente de tudo isso que tá aí. Honesto. Prometia um futuro melhor, com estabilidade financeira e segurança. Falava demais em segurança. Dava pra desconfiar.

Não era amor, era cilada.

A maior parte dos quase 58 milhões de eleitores de Jair Bolsonaro, as pesquisas dizem e repetem, vai lenta e resignadamente se dando conta de que o pagode do Molejo é seu verdadeiro hino nacional.

Aquele sonho intenso lavajatista, um raio vívido de amor não correspondido e de falsa esperança à terra desce e se espatifa: 580 mil mortos, recorde de desemprego, inflação fumegante, ameaça de apagão e golpismo miliciano. Até a Faria Lima, mulher de malandro, aparentemente cansou de apanhar.

Sai a ilusão, entra o stalker.

Recordar é viver. Só uma espiadinha pra checar a quantas anda o ex, movidos pela mistura dos nossos melhores e piores impulsos: tomara que ele esteja bem, tomara que ele não esteja tão bem assim. Clica logo pra ver.

Eita. Postou logo um retrato abraçando a namorada nova por trás. Lua cheia, pra completar. E de sunga, o biscoiteiro. Alguns coxinhas se incomodaram com o coxão, mas o pressentido bilau do Lula (sic) quebrou a internet.

Foi um antídoto semiótico à masculinidade tóxica das imagens oficiais do governo federal, cheias de fuzis e motos – às vezes um fuzil e uma moto são apenas um fuzil e uma moto, mas é raro, raríssimo.

Contra a pulsão de morte, o princípio do prazer. Mora na “Filosofia”, poema do artista visual carioca Eduardo Kac: pra remendar um coração partido, faça amor, não faça arminha.

Um encontro é sempre um início de universo

António Ramos Rosa, 2002

A Organização Mundial da Saúde foi substituída pela Organização Pessoal e Intransferível da Saúde.

Com a primeira dose da vacina aplicada em 60% da população brasileira, já nos sentimos prontos pra inventar nossos próprios protocolos de segurança e criar regras personalizadas de distanciamento.

Tudo absolutamente aleatório e ineficaz, claro.

O cumprimento é o melhor exemplo. Essa unidade básica de convívio social ganhou novas variações, adotadas de acordo com as idiossincrasias mais misteriosas: o precavido soquinho, o destemido aperto de mãos, o ousado abraço de lado, o temerário abraço completo, o quase fatal beijo no ar, o kamikaze beijo na bochecha.

Pra decidir em tempo real qual a opção adequada diante dos encontros casuais cada vez mais frequentes, recorremos ao personal infectologista que passou a dar plantão dentro da nossa cabeça – uma espécie de amigo imaginário com jaleco do SUS.

Deixa ver. Hum, este tem cara de quem foi atrás da Pfizer, mas aglomera em festa de casamento com 150 convidados, apenas os mais chegados mesmo, sabe? Soquinho. Ah, aquela só posta foto no meio do mato e compartilha memes contra os negacionistas. Abraço de lado. Opa, é a filhinha dela ali? As escolas são covidários, cancela o abraço de lado. Aperto de mão. E por aí vai.

Até que demorou.

Se precisamos de apenas 48 horas pra virar especialistas em geopolítica do Afeganistão, imagina nosso expertise em coronavírus nesta altura dos acontecimentos. Todo mundo é pré-candidato ao Nobel de Medicina.

Faltou combinar com a pandemia e com a variante Delta.

Enquanto planejamos a viagem do réveillon e pensamos na fantasia pro carnaval, a transmissão do vírus volta a acelerar em muitos lugares. Talvez você esteja num desses lugares, embora seja preciso esperar algumas semanas pra ter certeza. Melhor não bobear.

O poeta português António Ramos Rosa sabia da importância dos encontros. Após um ano e meio espremida, a vida enfim se expande novamente como num Big Bang. Só toma cuidado pra não cair num buraco negro infeccioso.

Primeiro, acalma-te. Depois, fica assim para o resto da vida

Ron Padgett, 2019

A pandemia provocou duas descobertas revolucionárias.

A vacina de RNA mensageiro e o desembarque de avião organizado por fileiras – esse com a ligeira vantagem de não provocar filas, muito pelo contrário. O objetivo é justamente evitar aglomerações desnecessárias.

Como no caso de grandes invenções como a roda e o fogo, ninguém sabe quem é o responsável. Há um herói anônimo escondido no organograma da Infraero, quiçá um simples encarregado ou assistente, merecedor de um busto ao lado de Santos Dumont em todos os aeroportos do país.

O visionário, graças a uma mudança simples de procedimento, conseguiu anular o pior da natureza humana – que costumava aflorar no exato instante em que, após o pouso, o comissário desligava o aviso de afivelar o cinto de segurança.

Era como acionar um detonador de bestialidade.

Subitamente, o mais pacato cidadão se transformava num centrovante trombador, abrindo caminho com o cotovelo e usando como tacape sua bagagem de mão, até alcançar a saída da aeronave.

Claro que todos tinham o mesmo arroubo. O corredor ficava congestionado, obrigando cada passageiro a esperar sua vez nas piores posições pra cervical, em vez de razoavelmente acomodado em sua poltrona.

O pico de estresse era idêntico numa ponte aérea, lotada de executivos com mochilas quadradas e níveis altos de cortisol, ou num charter direto de um balneário, com turistas abastecidos de oxitocina e isopor com lagosta.

(Se o Buda que é o Buda precisou de 49 dias à sombra de uma figueira pra realmente dar um relax, não seria uma semaninha na praia embaixo de um guarda-sol da Skol que daria um jeito nas suas inquietações.)

Bem, tudo isso ficou no passado.

Com a obrigação de desembarcar seguindo a numeração dos assentos, todo final de voo parece ser operado pela Swissair com Timothy Leary encarregado do serviço de bordo, tamanha a tranquilidade.


Toda segunda, o jornalista Fernando Luna (@fluna) apresenta sua “Antologia Profética”, com versos desgraçadamente atuais, no Instagram da Gama.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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