Coluna do Fernando Luna: "Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas" — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre as lições de humildade do covid, o burnout social, as frentes frias que vêm para o bem e um estádio de futebol polarizado

06 de Junho de 2022

Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas

Alberto Caeiro, 1929

Só existe uma criatura com mais autoestima que o homem hétero: o homem hétero que nunca pegou covid.

Ele se acha capaz de caminhar sobre as águas da pandemia, sem sequer molhar os pés. Tem certeza de que sua corrente sanguínea é um Amazonas de células T protetoras, seus receptores ACE2 têm teflon contra Sars-CoV-2 e seu corpo contém uma jazida de células de defesa NK.

Eu tava quase acreditando nessa pataquada, quando testei positivo.

Calcei à força as sandálias da humildade biológica, com suas duas tiras vermelhas. Depois de mais de dois anos escapando do bicho, enfim peguei covid. Não recomendo. Mesmo com três doses de vacina, foi uma cacetada.

No primeiro dia, gripe. Dois dias depois, virou ebola: dores no corpo todo, febre, dor de garganta, respiração pesada, coriza. Hoje, dez dias após os primeiros sintomas, segue uma tosse insistente e a sensação de que minha bateria tá com 80% de carga.

A superimunidade não passava de sorte – que acabou, não por coincidência, quando relaxei com a máscara.

Sei que é redundante dizer isso depois de 532 milhões de contaminações oficiais, fora as não registradas como a minha, mas o troço é ridiculamente contagioso. Das nove pessoas numa sala arejada por um janelão escancarado e duas portas abertas, seis ficaram doentes. Algumas, pela segunda vez.

(Ter covid duas ou três vezes por ano pode virar rotina, dizem os pesquisadores. Depois da popularização da injeção na testa, resta torcer pela vacina nasal. Pelo menos é em spray, dispensando a agulha – e, em vez de disfarçar rugas, protegeria contra a transmissão do vírus, que começa seu esculacho justamente pelo nariz.)

O mundo segue tão confiante em relação à pandemia, que fui à farmácia dei de cara com uma promoção de teste de covid: pague 2 e leve 3. Sério. Como se fosse xepa de fim de feira, embora a quarta onda deixe claro que a feira tá longe de terminar.

É mais um sintoma da nossa impaciência. Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos de Fernando Pessoa, escreveu “Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.” E nem o vírus. Só a gente.

Hoje, meu coração, como a porta da frente, está aberto pela primeira vez em meses

Raymond Carver, 1983

Dá pra tirar o atraso de dois anos de distanciamento em duas semanas?

Teve de tudo nos últimos quinze dias: festinha, festona, festival, pré-estreia, estreia, lançamento, encontro, reencontro, almoços, jantares, drinks, esticada, aniversário, casamento, pistinha, cinema, show, teatro, noite de autógrafo, vernissage e eventos generalizados – felizmente não fiquei sabendo de nenhum chá de revelação.

Uma coisa de cada vez? Tudoaomesmotempoagora.

Saltamos da prostração, com aqueles dias infinitos e sem nada pra fazer, pra síndrome de hiperatividade, com semanas maratonísticas em parece que você tá sempre atrasado pro próximo compromisso.

Mas com as baterias sociais arriadas por falta de uso, o ímpeto de socializar pode sair pela culatra. Vai ficando cada vez mais claro que não ficamos simplesmente trancados em casa. Ficamos fechamos em nós mesmos, e não tá fácil sair de novo pro mundo.

Não tinha jeito, era questão de sobrevivência. Diante de tanta morte e incerteza, um lockdown emocional parecia a única maneira de nos proteger daquilo que nem máscara nem vacina podiam dar jeito: a epidemia de ansiedade que se espalhou na velocidade do vírus.

À medida que as coisas entram nos eixos e voltamos a botar os pés na rua, não apenas abrimos como escancaramos a porta da frente do coração – pra abusar da imagem dos versos de “Falência”, do escritor norte-americano Raymond Carver, certeiro tanto na poesia como nos contos perfeitos.

Não é mais o caso de querer abraçar o mundo. Isso é pouco, arraia-miúda, mixaria pra compensar tudo o que passamos. Reparação pra valer é andar de mãos dadas, beijar, lamber, dançar, transar, fazer trisal, kama sutra, dormir de conchinha e ainda tomar café da manhã na padoca com o mundo.

O problema é o rebote desse bundalelê existencial.

Tenho visto muita gente dando defeito, queimando a largada, perdendo as estribeiras ou tudo isso ao mesmo tempo. Burnout, depois de finalmente ser reconhecido como doença ocupacional no início do ano, vai acabar também virando sinônimo de esgotamento social.

Vinde-me aquecer, que eu tenho muito frioe quero asfixiar-me em ondas de prazer

Cesário Verde, 1874

Vejo a previsão do tempo: parece que uma nova era glacial começa hoje.

Meteorologistas garantem que as temperaturas despencam em boa parte do país. Veículos de comunicação destacam a chegada da frente fria histórica. Vizinhos rejubilam com a conversa favorita dos elevadores virando trending topic – dona Graça do 71 enfim engata uma conversa.

Infográficos revelam como, não apenas um, mas dois ciclones extratropicais, ao contrário do que o próprio nome sugere, deixam os termômetros extragelados – depois de motociata, lanchaciata e gadociatas em geral, agora temos uma cicloneciata pra atazanar o país.

São Paulo deve bater o recorde de frio dos últimos 6 anos. Seis anos não parecem grande coisa, verdade, mas pra um carioca instalado do outro lado da Dutra, qualquer frase que junte “recorde”, “frio” e “São Paulo” tem efeito psicológico devastador e me faz estocar mantimentos.

Penso em transformar o home office em edredom office.

Penso no recorde de pessoas vivendo nas ruas , submetidas a políticas públicas assassinas – que matam à quente com armas de fogo e matam à frio com a falta de acolhimento –, e torço pra outubro chegar logo.

Penso que finalmente faz sentido os telejornais dedicarem um bloco pra contar se vai chover numa cidade onde você não tá, nunca esteve e nem pretende estar. Um anacronismo estranho, quando todo mundo tem à mão um celular com a mesmíssima previsão do tempo, sem exigir aquele levanta-e-senta dos apresentadores.

(Lembro de outra obsolescência midiática: boletim do trânsito nas rádios. Lá vem um repórter aboletado num helicóptero dizer que lá do outro lado da cidade há um engarrafamento provocado por excesso de veículos – e nunca por falta de transporte público. O Waze resolve melhor isso aí.)

Penso em migrar pro norte e desisto ao descobrir que a expectativa é de míseros 5 graus em Cuiabá – em Cuiabá!

Encontro algum conforto em “O Livro de Cesário Verde”, gajo conhecedor dos mistérios das gentes e da natureza. Há frentes frias que vêm para o bem, capazes de atiçar ondas de calor.

Nos tempos de escuridão também há de se cantar? Também há de se cantar: os tempos de escuridão

Bertold Brecht, 1939

O que um estádio de futebol diz sobre o país?

Tava há mais de 3 anos sem pisar num estádio, e fui ao Pacaembu logo duas vezes em menos de 24 horas. Se bem que em nenhuma delas a bola rolou.

No sábado à noite, ouvi a Gal Costa na inauguração do Pavilhão Pacaembu, uma tenda provisória montada exatamente onde ficava o campo de futebol do estádio mais bonito do país.

Aquela voz tamanha cantou maravilhas como “Fé Cega, Faca Amolada”, “Baby” e “Brasil”. Essa, com direito à explicação: “Eu queria tirar do roteiro, mas o Brasil não deixa”, disse, antes de disparar “Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim”.

(Quando o já clássico coro de “Fora, Bolsonaro” não foi muito longe entre a platéia, fiquei com a impressão de que boa parte dos lugares eram ocupados justamente pela turma que paga pra gente ficar assim.)

No domingo à tarde, vi a comemoração do Primeiro de Maio no estacionamento do Pacaembu, eufemisticamente batizado Praça Charles Miller – uma praça feita de vagas pra carro em vez de árvores.

(Cheguei pelo topo do vale do Pacaembu, onde uma profusão de viaturas e policiais acompanhava do alto a manifestação. Pareciam posicionados pra evitar a invasão de Higienópolis pela gente diferenciada lá de baixo.)

Leci Brandão cantava “Zé do Caroço”, aquela que diz estar “nascendo um novo líder no morro do Pau da Bandeira”. Apesar da presença de Fernando Haddad e Guilherme Boulos, todo mundo queria mesmo o velho líder.

Tanto que, quando Lula terminou seu discurso, houve uma debandada geral. Com a Daniela Mercury encerrando a programação diante de pouquíssimo público, ficou claro quem era o headliner do evento.

Nas duas ocasiões, tinha mais ou menos a mesma quantidade de gente. Diria, sem compromisso estatístico nem método científico, umas 3 mil pessoas: bom número pra um show fechado, mau número pra um comício aberto.

Nas duas ocasiões, porém, era cultura contra ignorância. Porque em tempos de escuridão, como Brecht escreveu no mais conhecido de seus poemas de Svendborg, também é preciso cantar.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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