Eu, a rodovia e meu pênis de uma tonelada

Há pouco mais de dez meses, comprei um pênis. Para isso, vendi um Honda Fit 2014 que adquiri, usado, em 2020. Peguei o valor da venda, juntei a um dinheiro reservado nos últimos anos e complementei com um empréstimo a ser quitado em 12 meses.

O pênis é azul escuro, pesa pouco mais de uma tonelada e foi feito em 2021. É, sem dúvida, bastante confortável, embora eu o ache às vezes meio desengonçado. Algo como um sapo vestido com um terno chique.

Esse “órgão” – que não é e nunca foi exclusividade de homens cisgêneros – me transforma exatamente em um deles. Mas não em qualquer um deles: com meu pênis azul reluzente de uma tonelada e potência máxima de 139 cavalos, eu adquiro certa passabilidade do “macho alfa” (doravante, MA), ou seja, posso ser lida socialmente como um homem hétero adulto, vigoroso, destemido e com algum dinheiro no bolso.

Preciso contar melhor: na verdade eu troquei de pênis. Gostava bastante do anterior, o de 2014, mas percebi que a combinação entre ele, meu sexo e meu gênero me ajudavam um tanto precariamente nas idas e vindas entre Recife e Caruaru, onde dou aulas semanalmente. Incontáveis vezes, vi pauzões que vinham a 150 quilômetros por hora, atropelando homem-mulher-nãobi-gato-cachorro que ousassem estar no caminho.

Eu também, a vida quase toda sendo pedestre, observava esses falos nas ruas: há toda uma deferência e culto aos pauzões acelerados. Abrem-se passagens, dá-se a vez, respeita-se mais, comenta-se a “destreza”. Afinal, trata-se dele, o rei, o homem adulto hétero vigoroso, destemido e com algum dinheiro no bolso. Quem não estiver dentro desse pacote aí, seja homem-mulher-nãobi-gato-cachorro, que dê seus pulos se quiser ser respeitado no trânsito.

Entendi que seria possível usar tecnicamente esse personagem se quisesse garantir um pouco mais de proteção no meu cotidiano atravessado há anos e ao menos duas vezes na semana por uma BR. É a 232, com 522 quilômetros, ligando Recife, litoral, até Parnamirim, no sertão. Com cerca de 200 quilômetros duplicados, a BR tem suas rotas bastante afetadas por eventos como a chuva, por exemplo: abrem-se buracos, alagam-se áreas, barreiras às vezes desabam. Tem uns assaltos também, de tempos em tempos. Tudo isso e ainda rola às vezes um caminhão, o super pênis, buzinando imperativamente atrás de você, ainda que ambos estejam na faixa de menor velocidade, a da direita. Não, ele não pode simplesmente lhe ultrapassar pela esquerda: ele quer que você, que não parece “macho” suficiente, saia da frente.

Foi por isso que dei adeus ao meu primeiro pinto, comprado aos meus 46 anos. Tive bons momentos com ele, embora preferisse seguir minha vida sem nenhum. Eles são caros, pouco práticos e, em se tratando daqueles movidos à gasolina, como o meu, completamente obsoletos. Tanto ele quanto o novo são completamente falsos.

“Tornei-me um pouco homem depois de ingressar no mundo engravatado do jornalismo”, escreveu uma vez minha colega de Gama, Marilene Felinto. Sei que o jornalismo também já teve esse mesmo impacto sobre mim. Agora, parece que o modus operandi das estradas quer fazer o mesmo. Reconhecer esses processos, entender como eles operam sobre nosso cotidiano, é, também, saber hackeá-los.

Ao se apoderar desse instrumento, desse falo clássico que vem das montadoras, qualquer pessoa, de qualquer gênero e identidade, pode herdar a anima, o status e as práticas, desse macho alfa. O problema é o que tudo isso representa.

Em 2022, dos 65 mil acidentes registrados nas rodovias federais do país, 54.948 tiveram pessoas feridas ou mortas. Os homens (as estatísticas não definem entre cisgêneros e transgêneros) estavam à frente de 70% do acidentes e compunham 81,3% dos sinistros com óbitos. A maior parte deles tinha mais de 45 anos. Os dados da Confederação Nacional dos Transportes coletados no ano passado ainda mostram que nossas rodovias nunca foram tão ruins: 66% foram classificadas no levantamento como regulares, ruins ou péssimas. Um recorde histórico.

A combinação acima representa uma tragédia para mulheres, crianças, homens e todas as pessoas que precisam trafegar nas rodovias nacionais e não vestem a capa do MA (e estou me detendo apenas nas federais aqui, ou seja, os números acima crescem bastante se ampliarmos o recorte). Você é simplesmente lançada para um jogo de videogame no qual, se a coisa der ruim, não há chance de reiniciar ou renascer: mesmo fazendo tudo certo, há sempre o risco de alguém fazer ultrapassagem onde há faixa contínua, de encontrar uma cratera no meio de uma curva fechada, uma pista dupla sem iluminação e acostamento, de alguém jogar luz alta em seu rosto, etc.

Esse cenário é uma das razões pelas quais tantas mulheres procuram — mais que os homens — carros maiores como SUV (Sport Utility Vehicle, ou veículo utilitário esportivo) e congêneres, muito embora o mercado não aponte com clareza essa questão, optando em colocar na coisa toda uma perfumada etiqueta de “estilo de vida”.

Nos levantamentos, prefere-se iluminar explicações tradicionais — e mesmo sexistas — de que elas gostam de carros do tamanho de apartamentos porque querem mais espaço para levar filhos e guardar compras. Sim, a mulher cisgênera (de preferência com algum dinheiro no banco) que cuida do lar é a consumidora na mira. O item “segurança” aparece, mas ele não especifica nada sobre estar e sobreviver nas rodovias, eclipsando um ponto fundamental sobre as razões de tantas de nós se endividarem para comprar um pênis. Obviamente, um “privilégio” em um país cujo salário mínimo custa R$ 1.320. Coloco privilégio entre aspas porque não considero que seja uma folga a mais ter que se matar de trabalhar para conseguir ter um carro (ou moto) que garante a própria sobrevivência, vide trabalhadoras/es de aplicativos (aliás, esse estudo aqui fala sobre mulheres da chamada classe C e a compra de automóveis, vale dar uma olhada).

Um levantamento interessante a respeito está na pesquisa “Sexo, gênero e comportamento no trânsito“, de Marcos Roberto Alves de Carvalho, que acertou ao afirmar que os altos índices de acidentes e mortes no trânsito no Brasil são um problema de saúde pública – e um problema de saúde pública que precisa ser urgentemente enfrentado também a partir das concepções do “ser bom motorista” naturalizadas no país, onde se confunde direção perigosa e mortífera com atestado de macheza e virilidade.

“No caso de condutores, diversos estudos demonstram que pessoas do sexo masculino transgrediriam mais as regras de trânsito, além de apresentar maiores riscos de acidentalidade, por exemplo, quando comparadas com pessoas do sexo feminino. No entanto, aparentemente, poucos dados são encontrados acerca do gênero dos condutores”, diz Carvalho na dissertação defendida em 2015 na Universidade Federal do Paraná.

Para superar a comum binaridade do sexo F/M e conseguir operacionalizar o conceito de gênero, ele lançou mão do Bem Sex-Role Inventory (BSRI, em inglês), instrumento construído com a finalidade de avaliar papéis sexuais. Carvalho tanto percebeu a inexistência de trabalhos sobre gênero e comportamento de condutores quanto, no campo da psicologia, a permanência da confusão entre as categorias sexo e gênero (aqui, um artigo sobre a diferença entre sexo e gênero, para quem quiser saber mais). A pesquisa ainda apontou a relevância de considerar o fator sexo quando se discutem as formas de conduzir veículos.

“Há indícios de que o uso da escala utilizada para masculinidade e feminilidade (variáveis de gênero) pode aumentar, de forma discreta, o poder de predição de comportamentos no trânsito ligados a transgressões ordinárias (violação das leis)”, diz o estudo, apontando para a necessidade de análises mais finas sobre gênero no contexto do trânsito — e, claro, de políticas públicas que considerem de fato os dados sobre acidentes nas estradas do país.

Os fatores geracionais — e mesmo mudanças de perfis a depender de estados — também precisam ser levados em consideração: cruzando dados coletados no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, André Medeiros realizou a pesquisa “Tendências na mortalidade por batida de carro e moto em dois estados do Brasil e a síndrome do macho jovem“, na qual apontou, ao contrário de pesquisas que indicam homens mais velhos como maiores vítimas, jovens homens habilitados como aqueles que mais morrem em batidas de carro — e, excepcionalmente, as mulheres apareceram como as que mais morrem em acidentes de moto, no Rio.

Além de destruírem vidas, os acidentes nas rodovias também impactam em bilhões o orçamento federal: segundo a já citada pesquisa da Confederação Nacional do Transporte, só em 2022 o custo total com os sinistros nas estradas federais foi de R$ 12,9 bilhões, uma média de R$ 200 mil gastos por acidente (equipes, deslocamento, combustível, hospitais, ambulâncias, etc). É o dobro do investimento público federal aplicado no ano passado nas rodovias, R$ 6,51 bilhões.

Esses números impressionantes não fizeram com que, até agora, campanhas de trânsito, federais ou estaduais, se detivessem sobre os dados oferecidos para realizar ações com focos específicos, dando cara aos comportamentos perigosos — e, sem medo de nomear, assassinos — assumidos na estrada. Mas não só: o estado calamitoso das BRs, que deveria ser razão para toda uma sorte de processos movidos pela sociedade civil brasileira, mostra o quanto as administrações públicas, também em sua maioria capitaneadas por machos alfa, estão pouco se lixando para quem morre pela simples falta de uma sinalização, um acostamento, uma passarela.

O sonho dourado de um investimento em transporte público de boa qualidade, seguro, parece ter ficado mais longe depois da pandemia, quando diversas empresas de ônibus reduziram frotas e não voltaram mais a colocar os coletivos nas ruas. Sonho mais dourado ainda seria ir para a highland Caruaru de trem, cruzando uma ferrovia que já existiu e que foi transformada em sucata para priorizarmos o caro e perigoso transporte rodoviário.

Enquanto isso, vou guiando minha masculinidade adquirida e dividida em suaves prestações, decepcionando o povo que, ao ver um pênis de uma tonelada na pista, acredita que ele vá sair rasgando tudo, sonoro e pedindo passagem. Mas sigo a 90 quilômetros por hora, quase sempre na faixa da direita (a única direita que me permito), achando mais interessante ouvir música e me manter segura do que achar que sou algo além de humana porque estou montada sobre 139 cavalos.

Para saber mais:

1. O artigo “As relações de gênero e as percepções dos/das motoristas no âmbito do sistema de trânsito”
2. “O movimento feminista já tem quase meio século e a mulher ainda busca um parceiro que lhe dê espaço e segurança”. Sim, eu li essa pérola publicada pelo Estadão em 2015 e não vou guardar esse belo exemplar de texto sexista somente pra mim não, vejam aí.

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