Bianca Santana
Refazenda, para adiar o fim do mundo
Os encontros e festivais literários no Brasil, apesar de 2020, são muitos e são lindos. Resistência. Nutrição para o agora
Nilce de Pontes Pereira do Santos, quilombola da comunidade Ribeirão Grande/ Terra Seca, agricultora familiar e defensora da territorialidade dos povos da floresta e do campo. Leonardo da Silva, cacique guarani na Terra Indígena Tekoa Jejyty e professor da escola indígena. Luiz Ketu, quilombola da comunidade São Pedro, graduado em letras, pedagogia, mestre em educação e professor na rede estadual de ensino. Parapoty Cléo Tekoa, professora guarani da Aldeia Itapuã e presidenta do Conselho Local de Saúde Indígena. Quatro intelectuais do Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo, abriram a oitava edição do FLI – Festival Literário de Iguape, em sua versão online. Para evitar prováveis problemas de conexão em uma transmissão online, foi gravado um vídeo de cada um deles, no chão onde pisam, produzem conhecimento e apontam caminhos coletivos.
O tema do festival, “pausa para o agora”, foi definido pela equipe de curadoria que tive a honra de integrar com o crítico literário Reynaldo Damazio e com o produtor cultural Antonio de Lara Mendes, em diálogo com Fernando Fado e Suenne Sotero, da Poiesis, organização social que executa projetos culturais do governo de São Paulo. A presença de Ailton Krenak nas primeiras reuniões desta equipe, antes mesmo do início da pandemia, foi essencial para as reflexões que levaram à decisão de manter a edição do festival online e também para a escolha do tema.
“Para que exista ritmo, os intervalos de silêncio são tão essenciais quanto as notas musicais. O encadeamento das palavras, as vírgulas e os pontos, os vazios entre as partes são tão constitutivos da prosa e da poesia quanto a palavra. A pausa é parte integrante da vida”, escrevemos como explicação do tema. “Mas nossa desconexão com a vida tem sido tamanha, que nem mesmo em uma pandemia de proporções inéditas, quando o isolamento social poderia salvar vidas, conseguimos parar coletivamente. E a morte se impõe pela falta de ar. Sem condições para respirar.” Dentre as quase 140 mil pessoas que morreram por COVID-19 no Brasil até agora, perdemos também João Lira, líder indígena da aldeia Itapuã, em Iguape. Referência na luta por educação indígena, João Lira havia participado da edição do FLI de 2018. No último 18 de setembro, morreu no hospital, aos 42 anos de idade. João Lira presente!
Pausar o lamento, a tristeza, as tarefas, as urgências, os pensamentos para se deixar levar por uma história é uma das delícias da leitura
Pausar o lamento, a tristeza, as tarefas, as urgências, as preocupações, os pensamentos para se deixar levar por uma história é uma das delícias da leitura. Pausar a rotina para ouvir e pensar sobre a língua portuguesa, a escrita, a oralidade, o tempo, o território e a diversidade abundante do Vale do Ribeira é uma tradição do FLI. Mesmo sem a aglomeração de gentes e livros na praça central de Iguape, onde o palco principal do festival foi montado nos últimos anos, nos pareceu importante afirmar a literatura, na elaboração estética de quem somos, como bem tão essencial quanto a cesta básica, o auxílio emergencial e o álcool em gel. E apesar das dificuldades da banda, que nada tem de larga, estava colocada a oportunidade de reunir mais facilmente, online, artistas internacionalmente conhecidos com artistas importantes do Vale do Ribeira.
Depois de uma semana de conversas preparatórias, o festival aconteceu no último domingo, 20 de setembro, durante mais de seis horas de programação apresentada por Roberta Estrela D’Alva e Mel Duarte. Teve Krenak, Emicida e Mariana Belmont borrando as fronteiras da filosofia e da poesia. Teve Preta Rara com Gabriela Gaia, professora de arquitetura e urbanismo da UFBA, o caiçara Paulo Cesar Franco e o poeta Edinho Santos, declamando seus poemas em LIBRAS, interpretados em língua portuguesa. Teve também Ana Maria Gonçalves, Siba, Tiganá Santana, Esmeralda Ribeiro. Aline Rochedo Pachamama, Giovanni Venturini, Raull Santiago, Magô Tonhon. E ainda Amara Moira, Jerá Guarani, Julio Cesar da Costa e Elizandra Souza. Entre os debates, Coletivo Jovem de Iguape e Batalha da Ilha 013, Grupo Fandango do Prelado, Batucajé do Vale com Marília Aguiar, Companhia Viela de Danças Urbanas, leitura dramática de grupos de teatro do Vale do Ribeira. E mini show de encerramento de Gilberto Gil.
Mas Bianca, pode usar coluna em revista como espaço para relatório de atividades? Quando é de interesse público e mais pessoas merecem ser convidadas a desfrutar do que ficou registrado no YouTube das Oficinas Culturais pode sim. E ainda cabe fazer propaganda. Ou o pessoal só fica falando de uma mesma festa literária. Festa que a gente ama, é lógico. Mas os encontros e festivais literários no Brasil, apesar de 2020, são muitos e são lindos. Resistência. Nutrição para o agora. Refazenda, para adiar o fim do mundo.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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