Bianca Santana: Mais uma mulher negra escrevendo — Gama Revista
COLUNA

Bianca Santana

Mais uma mulher negra que escreve sobre mulheres negras

É preciso falar em primeira pessoa — e falar muito — para escavar as histórias não contadas sobre quem sou e sobre quem somos

01 de Abril de 2020

Sou neta de Apolinária e Maria, também de Acineto e José. Os quatros nascidos à beira do Rio São Francisco, nos estados da Bahia, Pernambuco e Alagoas. Na década de 1950, meus avós estiveram entre as 1.024.700 pessoas que migraram do Nordeste em busca de melhores condições de vida. Em São Paulo, os homens abandonaram as famílias, e minhas duas avós cuidaram sozinhas, cada uma no cômodo e na cozinha de um mesmo cortiço na Zona Norte, de minha mãe, de meu pai, de minhas tias e tios.

Fui declarada parda no nascimento na década de 1980, assim como minha mãe, Maria, e meu pai, Feliciano, haviam sido declarados pardos nos anos 1950. Descobri-me negra aos 20 anos de idade, escrevi um livro sobre a descoberta aos 30 e por essa publicação me aproximei do movimento negro. Precisei de cinco anos de reuniões, marchas, entrevistas, cortejos, leituras, broncas, jogos de búzios, conversas e de uma tese de doutorado para compreender que “mulher negra” não diz respeito apenas à autodeclaração de parda ou preta ao IBGE, mas ao sujeito político insurgente diante das discriminações de raça, gênero e classe. Sou uma mulher negra. E também um pouco lenta.

‘Mulher negra’ não diz respeito apenas à autodeclaração ao IBGE, mas ao sujeito político insurgente diante da discriminação de raça, gênero e classe

Tenho certeza de que é preciso falar em primeira pessoa — e falar muito — para escavar as histórias não contadas sobre quem sou e sobre quem somos. Na primeira pessoa, tomamos consciência das memórias-hábitos que atualizam o conhecimento de nossas ancestrais ribeirinhas, negras, indígenas. Conhecimento que demorei a encontrar em livros, que tantas vezes me disseram ser impossível acessar por qualquer caminho. Mas que está cada vez mais apropriado por mulheres negras deste tempo, graças à escrita em primeira pessoa, ao convívio comunitário, à articulação política, à pesquisa em arquivos.

O projeto colonial em curso no Brasil desde 1530, também ele atualizado na eleição de representantes racistas, machistas, homofóbicos e entreguistas, será derrotado. E cada ação coletiva das mulheres negras é um passo poderoso na direção da utopia igualitária que cultivamos. Talvez por isso uma de nós, eleita vereadora, que apoiava familiares de policiais assassinados com a mesma dedicação que oferecia a familiares dos executados pela polícia, tenha sido brutalmente alvejada. O que há de mais sombrio na subordinação ao norte do mundo, na destruição da natureza e de pessoas consideradas indesejáveis, para garantir os privilégios de poucos, sabe que mulheres negras são um perigo.

Como sujeito coletivo, nós ninamos todas as crianças deste país, limpamos todas as casas e, apesar das mais abusivas situações de violência, somos também objeto do afeto de quem foi cuidado por nós. O que é possível fazer desse lugar de afeto, com a validação de votos ou títulos? E ainda conectadas à ginga que possibilitou sobrevivência e até prosperidade na escassez? O lodo do colonialismo, materializado nas milícias, teme tanto a resposta que disparou 13 tiros contra Marielle Franco. E, ao mesmo tempo que é assustador viver em um país que arquiva os indícios de envolvimento do presidente da República e de seus filhos nesse assassinato, é também uma fortaleza ver sementes de Marielle florescendo em corpos de mulheres negras por todo o país.

No medo que sentem da nossa insurgência, a elite colonial escravocrata e seus milicianos têm razão. É para ter medo mesmo. Porque estamos chegando. E descobrindo o que podemos fazer pelas brechas e fissuras do neoliberalismo, do patriarcado e do genocídio. Possivelmente não teremos respostas no tempo de vida da minha geração. Mas estamos empenhadas em sustentar o devir. Se o caminho dessas águas interessar, vale acompanhar a coluna que inauguro com este texto. Se parecer mimimi, nem se dê ao trabalho de ler. Mas prepara!

Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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