Isabelle Moreira Lima
O que beber (e saber) para conhecer vinhos – parte 1
Uma lista de uvas, uma origem essencial e um conceito para entender melhor o que você está bebendo e com o que quer encher a taça na próxima vez
Uma das maiores dificuldades de quem se inicia no mundo do vinho com a aplicação de um bom aluno é o que se gasta para se conhecer os chamados vinhos típicos, aqueles que condensam tudo o que uma uva em uma determinada região tem a oferecer. Isso porque muitos deles acabaram ficando famosos e passaram a ser o padrão de excelência a ser perseguido— e, logo, ficaram caros.
Mas, indo além da questão econômica, a tipicidade é um conceito bastante discutido nas primeiras aulas de apreciação e é fundamental para se julgar um vinho. Basicamente, ela diz respeito se o que entra na taça é coerente com o esperado pra uma uva (e/ou uma região). Se a característica de um Riesling é ser supermineral, pois que seja, que traga um aroma esquisito de querosene (mas que, juro, vem a ser delicioso). Se é um Syrah, que mostre o que é o cheiro da pimenta-do-reino moída na hora.
E como é que se conhece a tipicidade de uvas e regiões? Em primeiro lugar, leitura. Em segundo, litragem — pode ir se preparando para sacar rolhas e rolhas. A beleza de entender esse conceito e acumular conhecimento teórico é confirmá-lo aos goles ou julgar quem não entrega o que prometeu. E, quando digo “julgar”, falo de justiça mesmo, os que são bons também devem ser celebrados por sua tipicidade.
Como se conhece a tipicidade de uvas e regiões? Em primeiro lugar, leitura. Em segundo, litragem — pode ir se preparando para sacar rolhas e rolhas
Aqui, vale abrir um parágrafo. Para um vinho ser bom ele tem dois caminhos: no primeiro, ele pode ter boa tipicidade, ou seja, entregar o que promete; no segundo, ele subverte essa ordem, mas o faz com classe.
Nesse espírito, listo aqui cinco vinhos que são boas aulas sobre tipicidade, com pouca ou nenhuma subversão. Afinal, antes de quebrar as regras, é melhor conhecê-las bem. Eles são o começo de tudo, para ser bem receptiva aos novatos e também porque revisar conceitos e informações pode nos dar novas visões sobre um velho tema. Já tenho uma segunda lista de mais cinco vinhos que complementam esta e que ficam para a próxima coluna.
Corte Bordeaux
Só pra complicar um pouquinho, resolvi começar a lista por uma região e não por uma uva. Uma diferença básica entre vinhos do Velho Mundo (Europa) e do Novo Mundo (Américas, África do Sul e Oceania) é que no primeiro grupo os vinhos são classificados mais comumente por sua origem do que pelas variedades. E é comum também que cada lugar tenha o seu blend que forma o estilo do local. Em Bordeaux, na costa oeste da França e com muita influência do Atlântico, se planta mais a Merlot, a Cabernet Sauvignon e a Cabernet Franc, entre as tintas — e aqui elas são produzidas dez vezes mais que as brancas. A região faz alguns dos vinhos mais caros e valorizados do mundo, mas também produz achados que mostram seu potencial de fruta, elegância e potência (prove esse Château Bel Air ou o Château Arnaud Petit Bordeaux para começar). O corte Bordeaux é tão famoso que é comum que seja reproduzido em vinhos do novo mundo, na intenção de emular os vinhos de châteaux (como são chamadas as vinícolas bordalesas).
Cabernet Sauvignon
Aqui falamos da uva que é a maior professora de qualquer apaixonado por tintos porque é com ela que se fazem os grandes vinhos de guarda (que são feitos para envelhecer). Faz bebidas de cor profunda e taninos firmes e se dá bem em climas quentes porque amadurece lentamente — o verão da colheita de uma uva vai determinar o perfil da bebida. Em regiões mais frias de Bordeaux, onde fica menos amigável, é equilibrada por outras variedades. No Chile — está aí um país que soube fazer Cabernet Sauvignon — onde há mais calor e insolação, ela gera vinhos aveludados que são vendidos como varietais (uma uva apenas). Minha dica é procurar a versão chilena que vem do Maipo (como esse De Martino orgânico), do Vale Central (como o bem feito Carmem Insigne) ou de Colchagua e procurar ali seus aromas de groselha, ameixa e seu toque mentolado (típico da região, não da variedade em si classicamente), e reparar em seu corpo robusto e seus taninos firmes (que, com sorte, já terão sido domados). Vai bem com carnes e pratos mais substanciosos.
Pinot Noir
A Pinot Noir é outra brincadeira. Ela é uma uva elegante, com acidez altíssima e pouco corpo, pouca cor. Seu berço esplêndido é a Borgonha, e com muita luta pode-se encontrar algo pagável que venha de lá (esse aqui do Domaine Perraud é um deles). A crítica inglesa Jancis Robinson já escreveu: “Enquanto a Cabernet Sauvignon é confiável, a Pinot Noir é hipnoticamente variável”. Ou seja, cada lugar, uma expressão. No geral é frutada, traz notas de framboesa na sua coluna vertebral. Na Borgonha a coisa fica mais complexa, com violeta, cogumelo e até o chamado sous bois (bosque). Mas foquemos no Novo Mundo e, do Chile, onde os preços são mais amigáveis. De Leyda e de Casablanca vêm bons Pinots com essa framboesa primordial e a acidez marcada, ainda que não sobrem muitas outras camadas. Duas sugestões: o Catrala, de Casablanca; e o Leyda, de Leyda (aqui escrevi sobre ele). Uma dica para escolher Pinot Noir é preferir as regiões mais frias ou de altitude, porque trata-se de uma variedade que precisa de tempo para amadurecer. Os alemães fazem bem esses varietais (e os chamam de Spätburgunder — esse aqui é uma delícia) e a Patagônia argentina tem dado boas surpresas (como este), bem como o estado americano de Oregon (o Erath vale para uma comemoração).
Chardonnay
Uva mais plantada do mundo, é parceira da Pinot Noir, com origem na Borgonha e boa expressão também no Chile. As duas entram em cortes de espumantes e dos mais celebrados Champagne. Agora, se a Pinot varia de expressão a depender da região, o que dirá a Chardonnay? Na Borgonha ela é mineral, pode ser quase salina. No Novo Mundo, é tropical, pode trazer notas até de abacaxi. E, para complicar mais ainda, com passagem em barricas de carvalho pode adquirir toques amanteigados, mais cor (bem dourada), corpo e estrutura. Aí você me pergunta: ok, a Chardonnay tem todas essas expressões, mas qual é a mais típica? E eu respondo: tudo é típico. O aroma de abacaxi bem tropical é típico de regiões mais quentes (Maipo, no Chile, por exemplo, de onde vem o Espino), porque tem mais contato com o sol e, logo, a fruta desenvolve mais açúcar. Na Borgonha, com seus solos calcários e clima frio, o vinho fica com acidez mais alta, mais mineral, pode ser mais clarinho (como o Frissons 2019). A harmonização deve seguir o espírito: para os amanteigados, queijos e cremes, manteigas mil; para os minerais e salinos, o que vem do mar.
Sauvignon Blanc
Famosa pela expressão francesa dos vinhos do Loire, onde atinge as mais célebres versões em Sancerre e Pouilly Fumé, a Sauvignon Blanc é nítida, não mente sobre quem é. Tem acidez rascante, corpo leve, é clarinha. Na França, é profundamente mineral, com aromas de giz e muito, muito seca. Na Nova Zelândia, que produz belíssimas versões, tem aroma e gosto de coisa verde: grama cortada, aspargos (sugiro procurar em redes de supermercados, que improtam direto). No Brasil, é tropicalíssima (esse Don Guerino não deixa mentir), o puro maracujá, como também pode acontecer no Chile (daqui, prove de Leyda esse Santa Carolina). É perfeita para acompanhar pratos leves — peixe branco e queijo de cabra são campeões. E, aqui, se tiver um aroma de pimentão esquisito que os amantes do vinho tendem a detestar e a culpar o produtor, a culpada é a chamada pirazina.
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Curioso é pensar que essas são as características típicas desses vinhos hoje. Com o aquecimento global pode ser que em dez ou vinte anos se espere outra coisas deles e, mais tristemente, algumas nuances sutis se percam — isso sem falar na possibilidade catastrófica, que seria a extinção total de alguma dessas castas.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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