Bianca Santana
Carta às crianças Marcelino
Cada criança precisa de uma aldeia toda! E vocês podem ter certeza de que somos muitas e muitos com vocês
Rafaella, Raphael e Rayssa,
Nenhuma criança deveria enterrar o próprio pai. Muito menos por complicações de uma doença para a qual já existe vacina. Quando o pai se dedicou tanto a apoiar pessoas com fome e com sintomas de covid-19, então… É muito terrível!
Escrevo para dar o abraço apertado que não posso dar pessoalmente em vocês três. E para repetir aquilo que tenho falado para a mãe de vocês todos os dias: estamos com vocês! Além da força de Luana, essa mãe maravilhosa, vocês estarão sempre cuidados pelas irmãs mais velhas, Raquel e Rebeca, pelo cunhado, pelas tias e tios, pelos avós, pela comunidade do Pagode da Disciplina, pela UNEafro Brasil, por Peregum. A gente acredita que cada criança precisa de uma aldeia toda! E vocês podem ter certeza de que somos muitas e muitos com vocês.
A dor e a raiva que carrego ao longo desses anos, queria muito que nenhuma criança sentisse
Semana passada, quando estive com a mãe de vocês no hospital, ela me contou como foi tentar contar para vocês a gravidade do estado de saúde do Thiago. Choramos com o que você disse para ela, Rafa: “Mãe, a tia Lê cuida das pessoas e todo mundo fica bem. Ela está cuidando do meu pai, ele vai ficar bom. Se acalma, mãe”. Nosso choro tinha o desejo de concordar com você. Mas a gente sabia que, apesar de todo o cuidado da tia Leticia, das doutoras Bruna e Gladys, dos profissionais do SUS que cuidaram tão bem dele no hospital, a situação era difícil.
Thiago chegou com dificuldade de respirar e saturação baixa no hospital, o que tia Lê percebeu rapidamente. Recebeu oxigênio, depois precisou ser entubado, e quando estava respirando bem de novo os médicos perceberam que ele tinha tido um derrame grave. Foi reanimado de uma parada cardíaca. E depois muitos órgãos foram se despedindo.
“Meus filhos, Bia… Eu não sei o que preciso fazer”, sua mãe desabafava. Porque ela sabe o tamanho do amor que unia vocês três ao Thiago, e também como era única a relação de cada um de vocês com ele. Ela sabe que vai estar ao lado de vocês para tudo, mas que essa ausência vai marcar vocês para sempre.
Vai chegar o dia em que as crianças negras vão poder crescer cuidadas pelo pai
Meu pai morreu quando eu tinha 11 anos, a idade do Rafa, o do meio de vocês três. Foi um mês antes de eu completar 12 anos. Ele passou 15 dias no hospital, não por covid, mas por um tiro. A dor e a raiva que carrego ao longo desses anos, queria muito que nenhuma criança sentisse. E por isso a gente se organiza como movimento negro, exige o impeachment do presidente que dissemina a morte, denuncia o Brasil internacionalmente. Precisamos interromper o genocídio negro. E sentimos muito, muito mesmo, que nada do que a gente faz tenha sido suficiente para proteger o Thiago. Nem para proteger vocês três da dor imensa de perder o pai ainda na infância.
Chorem tudo o que vocês precisarem chorar, amores. Vocês não precisam ser fortes. Tem muito adulto ao redor pra cuidar da Luana e de vocês enquanto sentirem essa dor.
Vocês não estão nem estarão sozinhos!
E vai chegar o dia em que as crianças negras vão poder crescer cuidadas pelo pai.
Com todo o amor, e abraços muito apertados,
Tia Bia
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.