Coluna do Marcello Dantas: À Luz no Fundo do Poço — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

À Luz no Fundo do Poço

A arte cura o desnorteio, sistematiza a loucura e denuncia o abuso. A arte pode ser uma vacina contra o negacionismo

02 de Junho de 2021

Meu melhor amigo sempre me chamou de otimista doentio. Ainda assim, uma verdade em que sempre acreditei é que as coisas podem sempre piorar. Você pode estar sendo assado no inferno e uma pomba ainda cagar na sua cabeça. O corpo humano, diante da dor ou do estresse, libera doses elevadas de endorfina para que possamos tolerar os impactos desses traumas. Talvez por esse motivo que, de certa forma, mesmo diante dos descalabros dos últimos tempos, as pessoas pareçam estar anestesiadas. Mas como podemos saber que de fato chegamos ao fundo do poço? Qual a medida que permite entender que o projeto de uma sociedade se esgotou e algo completamente novo precisa ser erguido?

Quando os remédios conhecidos não mais fazem efeito no paciente, entendemos que ele está em estado irreversível. O Brasil parece ter chegado nesse ponto. Quando as vacinas não mais funcionam e a imunidade de rebanho é substituída pela subordinação ao pastor, sabemos que chegamos a um limite do projeto que um dia se sonhou. O fundo do poço se anuncia.

Mas a história do mundo ensina que é nesse momento em que se inicia a transformação, e é a arte que de alguma forma sempre aponta um caminho. Talvez por isso mesmo que os que governam atualmente tentem silenciar as artes de todas as maneiras possíveis. A arte cura o desnorteio, sistematiza a loucura e denuncia o abuso. A arte pode ser uma vacina contra o negacionismo.

Ainda que historicamente possamos evidenciar que isso tenha acontecido no passado, quando o desafio se apresenta no presente, precisamos saber como dar início à invenção de uma nova realidade. Nesse novo contexto, a arte não tem um papel de adorno ou de representação, ela se torna matriz. As matrizes são como âncoras às quais as naus se amarram. Toda âncora é um triângulo de pelo menos três pontas. Para mim essas três pontas nesse momento são: trauma, sonho e fuga.

Precisamos dos artistas para levantar a vela poética que nos pode tirar desse marasmo

O trauma se manifestou de forma coletiva como nunca na nossa geração, seja pelo impacto do vírus propriamente, seja pela negligência dos que poderiam ter agido. Ele gerou a vala que teima em nos atolar. O trauma e o isolamento levaram a uma ativação do nosso subconsciente como nunca havíamos sentido. O sonho pode manifestar futuros possíveis que estão ocultos à consciência. Um misto de medo, incerteza e realidade desconhecida se apossaram do nosso espaço onírico, ocupando os sonhos de forma compulsiva e abrindo o espaço para que se germine uma estratégia para sair do atoleiro: a fuga.

A luz que surge no fundo do poço é a possibilidade de lançar a imaginação à aventura da fuga. Precisamos dos artistas para levantar essa vela poética que nos pode tirar desse marasmo. Sem uma síntese visual radicalmente distinta das que tivemos até então, não conseguiremos reerguer-nos. É preciso abrir chances para outras vozes se manifestarem. Talento é um bem muito mais abundante do que a oportunidade. No contexto atual, os enteógenos têm o poder de ser os ativadores dessa transformação.

Vamos precisar de poções muito mais fortes do que orações e cachaças para nos restituir a glória. O nível de invenção que pode transformar uma sociedade vai passar por medicinas que expandam nossa consciência e sensibilidade, que despertem nossos sentidos e que nos permitam ter novos raciocínios e hiperlucidez. Na falta de uma substância sintética que, como um deus, possa mudar o curso da história, teremos que nos potencializar ouvindo o que os povos ancestrais guardaram como seus mais poderosos agentes curadores para nos conectarmos às forças matrizes da regeneração.

A senha virá dos cipós, das vinhas, dos micélios, das raízes e das esponjas-do-mar. Aqueles que souberem ouvir vão iluminar o caminho de saída do poço.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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