Marcello Dantas
É preciso saber morrer
A vida pode até ser bem vivida como uma dança fluída, mas a morte precisa de arquitetura
Tem uma canção dos anos 1960 composta por Roberto e Erasmo Carlos que pregava ser preciso saber viver. Em seu brilhante filme póstumo, Hector Babenco mostra, no início, um trecho de um filme seu no qual um senhor lhe diz que para ser um grande cineasta ele precisava aprender a contar histórias e para aprender a contar histórias era preciso viver.
O documentário “Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou” é um primor porque nos mostra o outro lado desta moeda: é preciso saber morrer. O cineasta foi diagnosticado pela primeira vez com câncer aos 38 anos, mesmo ano em que concorreu ao Oscar de melhor diretor com “O Beijo da Mulher Aranha”, filme disputado por lendas vivas como John Houston, Peter Weir, Akira Kurosawa e Sidney Pollack. O novato Babenco vivia, então, um dilema entre uma meteórica carreira no topo da cadeia alimentar de Hollywood e o abismo de um câncer no sistema linfático. Seu médico e amigo Drauzio Varella lhe deu cerca de seis meses de vida, no máximo.
Esse flerte com a morte durou ainda mais 32 anos e sete longas-metragens, além dos quatro anteriores que havia dirigido. O que mais me fascinou no filme, assinado por sua companheira Bárbara Paz, é a claríssima consciência de que seria possível fazer uma obra depois de partir, como equações a serem desvendadas e desenhadas por parceiros depois que ele não estivesse mais entre nós. Feito similar ao do genial artista plástico norte-americano Sol LeWitt (1928-2007) que deixou uma enorme bagagem de obras para serem produzidas postumamente. Ambos, Sol LeWitt e Hector Babenco, tinham clareza da grande genialidade que possuíam. Assim como tinham noção de que a morte viria, em breve, mas que poderiam deixar uma porta aberta para que sua proposição artística se realizasse além dos seus batimentos cardíacos. Eles sabiam que era preciso saber morrer, porém, partir de um forma criativa, surpreendente e original.
A arte proporciona a possibilidade de se eternizar enquanto enigma, de gerar impacto além da vida
Babenco soube criar excelentes personagens em filmes contundentes como “Pixote” (1981), “Lúcio Flávio” (1977), “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), “Ironweed” (1987), “Brincando nos Campos do Senhor” (1991), “Coração Iluminado” (1998) e “Carandiru” (2003). Em cada um, surgem seres obcecados por alguma condição. Ele mesmo se revela um personagem fascinante: começou a vida vendendo jazigos em cemitérios, o que fazia com argumentação exemplar. De certa forma, a sua vida foi sempre um ensaio em como encenar uma morte bem pensada. Criou imagens inesquecíveis de agonia, de redenção, de perseguição e de abismos infinitos. Como autor, criou uma particular iconografia para o nosso encontro com nossa finitude.
Ao desenhar explicitamente no filme a cena final, onde estaria vendo a vida da Baía de Hong Kong ao lado de uma linda atriz chinesa, ele estava, de fato, dirigindo e enquadrando o cinema que faria após partir. A arte proporciona a possibilidade de se eternizar enquanto enigma, de gerar impacto além da vida. Quem lembra do nome de Josef Georg Hörl, prefeito de Viena entre 1773 a 1804? Já Mozart nunca será esquecido, nem tampouco esgotado em seu potencial de interpretação. Suas senhas permanecem abertas a serem reveladas além da sua existência.
A vida pode até ser bem vivida como uma dança fluída, mas a morte precisa de arquitetura. Mesmo que essa arquitetura seja como pensam alguns povos indígenas, que deve-se passar pela vida como uma nuvem passa pelo céu, sem deixar rastros. Não se iluda, dentro dessa sabedoria ancestral, existe um projeto de incrível sustentabilidade e biodegradação. O desaparecimento dos traços da existência são compensados pela consciência do ato simbólico de preservar o saber desaparecer.
Babenco entrou para um seleto clube de criadores que dirigiram com enorme maestria seus atos finais, assim como David Bowie, Andy Warhol e Leonard Cohen. Sua sabedoria foi inocular em Bárbara Paz o seu vírus de criador e capacitá-la para entender o sublime que ele sempre buscou em seus filmes. Ela respondeu à altura ao levar a cabo essa difícil missão e deixou que o cinema imitasse a vida que, por sua vez, inventava o cinema.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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