Paulo Mendes da Rocha: o que está em jogo é a memória da obra de um homem
O curador e colunista da Gama Marcello Dantas defende a escolha do arquiteto brasileiro de doar todo seu acervo para museu português
Nos últimos dias uma polêmica se armou com a decisão do arquiteto Paulo Mendes da Rocha em doar seu acervo pessoal para a Casa da Arquitectura, em Portugal. O grande arquiteto brasileiro, ganhador do Prêmio Pritzker em 2006, decidiu aos 91 anos de idade que seu acervo estaria em melhor cuidado e sua memória mais garantida nas mãos de uma instituição portuguesa em vez de uma brasileira.
Antes de levantarmos bandeiras nacionalistas e oportunistas, devemos lembrar que o que está em jogo aqui é a memória privada da obra de um homem, e não um acervo público brasileiro. A arquitetura é uma prática que consegue ser muito bem preservada digitalmente, sem grandes perdas de qualidade — pelo contrário, às vezes é beneficiada. O acesso pode ser perfeitamente garantido a qualquer interessado via ferramentas online. Então, não estamos falando de perda ou inacessibilidade de um patrimônio em função de sua localização geográfica. Foi-se o tempo em que isso era determinante.
Mas o Brasil da era atual, que opta por “acefalizar” seu Ministério da Cultura, esvaziar suas instituições culturais e de memória e que, por diversas vezes, viu seus acervos derreterem em incêndios, inundações e descaso, não merece receber um aporte de um tão relevante quanto o do Paulo Mendes da Rocha, arquiteto visionário e pensador raro no mundo hoje. Sua obra é relevante para a história do Brasil, assim como é para a história da Arquitetura do mundo.
Portugal tem se mostrado um país com excelente histórico de preservação e digitalização de patrimônio. Sem dúvida é o melhor país de língua portuguesa na preservação de acervos valiosos. Todo o patrimônio histórico português encontra-se catalogado em um único banco de dados que é de acesso público.
A Casa da Arquitectura é uma instituição dedicada à preservação da memória da Arquitetura, especializada no processo de digitalização e difusão de acervos, seja via exposições ou por meio digital. Entre suas coleções está a Coleção Arquitetura Brasileira, compilada por Guilherme Wisnik e Fernando Serapião. O histórico deste tipo de cuidado no Brasil tem se mostrado vergonhoso. Paulo Mendes da Rocha também construiu alguns edifícios emblemáticos em Portugal, tais como o Museu dos Coches, em Lisboa, constantemente o museu mais visitado do país.
A discussão que cabe aqui não é a decisão dele de proteger seu legado, mas a decisão da sociedade brasileira de não cuidar da sua própria memória
Sou bastante solidário à decisão do Paulo. Porém, a discussão que cabe aqui não é a sua decisão de proteger o seu legado, mas a decisão da sociedade brasileira de não cuidar da sua própria memória. Frequentemente sou convidado a desenvolver museus no Brasil, um país repleto de história, mas miserável em termos de acervos. Temos sempre que “inventar acervos” para contar histórias que não possuímos evidências. Em grande parte, não é que os acervos não existiam, um dia existiram, mas o descaso os destruiu.
Uma sociedade que não preza nem pelos edifícios que guardam sua memória, terá enorme dificuldade em um dia ter alguma memória para contar. São inúmeros exemplos vindos do próprio Governo, como a extinção da Casa de Rui Barbosa e o esfacelamento de uma instituição tão importante como a Cinemateca Brasileira, que guarda o mais precioso acervo audiovisual do país. Atos assim geram uma desconfiança total na capacidade do país de se responsabilizar por elas no futuro.
Diante das evidências concretas que temos vivido no cenário cultural, minha última preocupação neste momento é o anacrônico argumento nacionalista. Se você estivesse num navio afundando, você iria questionar a bandeira do barco que veio a seu resgate? Parte do Brasil fez uma opção anticivilizatória de ser um país sem cultura e sem memória. O menor preço a se pagar é o de não termos mais aportes no nosso definhante patrimônio. Penso com alívio, “que bom que o Manto Tupinambá estava em Copenhagen e não no Museu Nacional.”
Diante das evidências concretas que temos vivido no cenário cultural, minha última preocupação neste momento é o anacrônico argumento nacionalista
Esta semana o país vai protagonizar mais um desses absurdos kafkianos de uma nação culturalmente suicida: parte do importante acervo constituído por Edemar Cid Ferreira e corretamente distribuído por instituições culturais como o MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia – USP), o MAC USP (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) e o Museu do Ipiranga será leiloada a preços iniciais irrisórios em São Paulo, a mando da Justiça para ressarcir os credores do Banco Santos. O MAC USP investiu 15 anos de trabalho em preservar e restaurar o acervo e o manteve à disposição do público em diferentes mostras através dos anos. Porém, o entender da Justiça surrealista do Brasil e o interesse privado de credores financeiros do Banco supera o interesse público de consolidar os raros acervos constituídos no Brasil nesse século.
São decisões como essas que geram insegurança aos eventuais doadores de acervos no país, além de uma legislação que de fato não incentiva a figura do colecionador/doador. Pode parecer paradoxal em um momento em que grandes instituições europeias estão aceitando devolver acervos para países africanos que foram saqueados no passado. Sou claramente a favor dessa devolução, garantidas as condições de acesso e preservação. Mas não é o que está em jogo na polêmica em torno do acervo de Paulo Mendes da Rocha. O acervo não está sendo saqueado mas doado pelo próprio autor. Ao Paulo não cabe decidir os rumos do Brasil, mas cabe a ele decidir o destino e a preservação de seu legado.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior. Em 2022, assina a curadoria da Bienal do Mercosul. Curou a exposição LUSA – A Matriz Portuguesa, composta pelo acervo de mais de 30 instituições portuguesas e está desenvolvendo o pavilhão Chance to Change no âmbito da Lisboa Capital Verde da Europa. Colaborou com Paulo Mendes da Rocha no Museu da Lingua Portuguesa e no Museu das Minas e do Metal. É colunista da Gama.