Astrologia cabeça
Para a poeta e astróloga Júlia de Carvalho Hansen, há mais entre os astros e os versos do que supõe a vã filosofia millennial
O que têm em comum Hilda Hilst, Drummond, Proust e Paul Valéry, além de ser grandes escritores? “Todos têm Saturno em Capricórnio”, diz Júlia de Carvalho Hansen num café em São Paulo – pertinho do ateliê onde atende um número crescente de interessados em sua abordagem literária da astrologia. “Saturno é o tempo, o eixo, a escritura da pessoa. Capricórnio está em casa no planeta e traz a necessidade de construção, segurança. Então é uma posição comum a escritores obcecados pela obra inacabada.”
Poeta e astróloga, Júlia faz o mapa de todos os escritores que lê. É seu hobby juntar literatura e astrologia. “Já me aconteceu de um consulente [um cliente] dizer que passou a semana pensando numa frase que eu falei. Só depois eu percebo: a frase era um verso.”
Não que ela transforme, conscientemente, os insights verbais dos astros em literatura. “É que a astrologia, tanto quanto a poesia, é uma forma de sensibilidade e – por que não? – de arte.” Num momento em que o interesse pelos astros vive um novo boom, ela faz uma astrologia cabeça.
Estava escrito nas estrelas
Filha do crítico literário e professor João Adolfo Hansen (Gêmeos) e da educadora Marta Chagas de Carvalho (Sagitário), a capricorniana cresceu num lar agnóstico e culto. “Desde criança, eu lia horóscopo de jornal com um misto de fascínio e desprezo.”
Ela tinha 12 anos quando a mãe de uma amiga indagou sobre seu aniversário e descreveu sua personalidade em detalhes. “Fez muito sentido, fiquei curiosa.” Então tomou livros emprestados e gosto pelo tema e, na mesma época, começou a ler poesia sem parar. Ao longo da sua vida, ambas andaram juntas, sempre.
Dos pais acadêmicos, nunca percebeu desdém. “Meu pai disse: ‘Só faça o que lhe der prazer’.” E Júlia tinha esse prazer tanto ao fuçar os astros quanto ao escrever poesia. Na faculdade de Letras, lia o mapa dos colegas. Na hora de buscar o ganha-pão – “o que a literatura nem sempre dá” –, ouviu dos amigos que devia cobrar pelos mapas. Uma pessoa foi indicando- a para a outra. E o resto é uma história de sucesso.
Júlia faz dezenas de mapas por mês (mas não revela exatamente quantos). Mas não quer ser pop, como uma nova onda de astrólogos da geração millennial: não usa Instagram para previsões, não tem blog nem dá palestras, mantendo o low profile dos poetas puristas em vez do hype dos astrólogos de internet. “Não dou conta nem dos clientes que chegam.”
Netuno em Peixes
Mas qual o porquê desse boom atual da astrologia? “Netuno em Peixes”, diz, com certo sarcasmo, a astróloga escritora. Mas a explicação dos astros faz sentido. “Desde 2011 vivemos essa conjuntura. Netuno é uma espécie de antena de captação. Em Peixes, isso traduz o exacerbamento do interesse por questões místicas e míticas.”
Mas a análise cética acerta o alvo. A astrologia virou um hit na última década graças à internet, ao celular, às redes sociais – mas também, crava, a conhecidos fenômenos existenciais: “Estamos mais conectados, mas também mais isolados”, diz.
A astrologia possibilita que o sujeito se repense e, no limite, exista
“Afinal, a astrologia é o quê? Uma forma de terapia? De ciência? Uma filosofia, um sistema? Uma ferramenta oracular? Eu diria que tudo isso.” Mas o que ela faz melhor, conta Júlia, “é conectar o sujeito com suas questões e, simultaneamente, com o mundo, com o outro”. A astrologia nos ajuda “a não sermos esmagados pelas exigências e violências do capitalismo. Ela possibilita que o sujeito se repense e, no limite, exista”.
Se nos anos 1970 pessoas que não se conheciam podiam facilmente se conectar pelo vocabulário comum da psicanálise, diz, citando a New Yorker, hoje o fazem pela astrologia. Basta um ascendente em Peixes ou uma lua em Áries e o papo floresce. Netuno fica em Peixes até 2026. E depois? “É viver para ver.”
Claro enigma
Fernando Pessoa era entusiasta da astrologia. Hilda Hilst não passava sem – seu mapa constava em seu arquivo pessoal. E até grandes empresas do ramo, como Co-Star, contratam poetas para escrever as frases que constroem (de forma automática, online) os horóscopos de milhões de pessoas. Os versos e os astros, tudo indica, têm mesmo uma conexão.
Se o oráculo fala por enigmas, “a poesia é o mais claro enigma, diria Drummond”. Como no poema, a leitura astrológica é palavra, voz. “Fazer um mapa tem a ver com a habilidade de lidar com a linguagem. Ser poeta ajuda, é uma ferramenta de interpretação: sempre que uso uma palavra, a relação com a escrita se coloca”, diz. “Alguns astrólogos são matemáticos, fazem predições. Não é meu trabalho. Eu busco o invisível das coisas.”
Alguns astrólogos são matemáticos, fazem predições. Não é meu trabalho. Eu busco o invisível das coisas
Júlia publicou cinco livros e foi convidada da Flip. Mas, quando faz check-in num hotel, lhe perguntam a profissão e ela diz que é escritora, recebe sempre uma resposta parecida. “Que estranho! Isso é um trabalho de verdade? É no seu tempo livre que você escreve, né?”
Ser poeta no Brasil não é fácil. Mas ser astróloga ajuda. “Se numa festa digo que sou astróloga, as pessoas conectam na hora. É um exótico atrativo (risos). Pensam: ‘Nossa, o que essa pessoa sabe que eu posso querer saber?’.” Em tempos de saturação astral, esses são os versos mais ansiados.