Fernando Henrique
Experiência nº 3
Percussor da performance no Brasil, Flávio de Carvalho empresta seu corpo para uma reflexão sobre o direito de ir e vir
Em 1899, nasceu em Barra Mansa, no Rio, o multitalento Flávio de Carvalho, cuja biografia ficaria marcada por suas ideias revolucionárias e provocativas. Em 1911, estudou em Paris e, três anos depois, seguiu para Newcastle, no Reino Unido. Nascido em berço de ouro, Flávio foi da engenharia civil às artes plásticas. Acumulou os títulos de performer, pintor, desenhista, arquiteto, cenógrafo, decorador, escritor, teatrólogo e engenheiro. Em 1922, voltou ao Brasil. Neste período, ressurgiu fazendo das críticas um movimento para além do novo. Incompreendido no seu tempo, ele nos ajuda compreender o agora.
Em uma de suas ações com maior repercussão, a “Experiência nº 3”, Flávio de Carvalho desfilou pelas ruas do centro de São Paulo em 1956 vestindo blusa, saiote e meia-arrastão. Essas peças compunham seu new look, chamado ainda de “traje tropical” ou “traje de verão”, fruto de pesquisas que dedicou à moda na década 1950. Procurando conceber um tipo de roupa mais adequado ao clima de um país tropical, ele desconstruiu o gênero.
Provocar o inconsciente é algo que ele fez – e fez muito bem. A realidade desse multiartista é bem diferente da minha. Ele era branco; eu sou negro. A cor de pele certamente não define quem é o quê, mas leva a consequências outras — se é um ou se é outro. A saia nos uniu. E me fez entender que é preciso estar atento, frágil e não querer ser forte. É preciso querer. Eu quis algumas vezes. Desisti várias outras. E, para entender essa doçura de burrice, como disse Clarice Lispector em seu poema “Não Entendo”, recorri a Flávio de Carvalho para buscar otimismo, coragem e estilo.
Não era meu objetivo ser notado por onde passava. Eu, arrogantemente, me comparo a Flávio; queria ter meu espaço, independente do gênero, e queria estar como desejava. Quando viajei à China, vi pela primeira vez homens que não eram trans, nem gays, ou que não tinham qualquer identificação com o feminino, ou qualquer outra questão ligada a gênero, ou a movimentos XYZ, vestindo aquela belezura de sarong — um tecido amarrado à cintura que parecia deixar tudo bem confortável e fácil de portar.
Era verão de 2010 na Ásia. Não tive dúvida que ali estava um novo eu. Comprei uma, duas e, não contente, barganhei a terceira. Experimentei, acreditei que podia ousar e, claro, preteri cueca. Ousei, foi quase um grito de libertação. E, no momento de sair do hotel, já com meu new look descobri que eu não tinha nenhuma relação com aquilo. Era simples e prático, mas ainda não era eu. Fomos para um parque em Pequim, eu e dois amigos brasileiros. No piquenique, com seu estilo bem sincero, um dos amigos disparou: “Não é para você, está bizarro”. E completou com um #prontofalei.
Graças a esse ser iluminado e bocudo, não tirei meu sarong nunca mais. Até porque nas ruas da Ásia ninguém liga a mínima para minha saia (ou sarong), e sim para minha cor de pele preta, que chamava atenção por lá. Não se via negros com ou sem saia em Pequim.
Em fevereiro de 2011, estava de férias no Brasil, longe do inverno berlinense. Era carnaval, que alegria. E então (novamente) ousei, afinal era uma época propícia a isso. Fui de saia sem meia-arrastão (ficou péssima) para o aeroporto. Já no avião, que levava muitos brasileiros, percebi que seguia rumo à hostilidade. Mas fui que fui — e fui correndo. Naquele espaço fechado, em um curto período de tempo, escutei coisas como “a bicha surtou” ou “negão, porra, está queimando o filme da cor” (isso de outro homem negro), além de um debochado “passa, santa”.
As peças de roupas não têm gênero e os intelectuais, como Flávio, já sabiam
Passei lindamente. Afinal, eu já sabia como me portar e até mostrar minhas curvas com as amarrações do sarong. Ali, bem à la Flávio de Carvalho, entre o gesto e a ação de só querer, cheguei aos trópicos em um calor absurdo. De saia, cheio de cores, estava refrescantemente feliz. Foram vários momentos — de silêncio, de empatia, de xingamento e, o melhor, de descoberta. Afinal, as peças de roupas não têm gênero e os intelectuais, como Flávio, já sabiam.
Atualmente, saias são para humanos. Obviamente no Brasil, país machista, chamam muito mais atenção em um corpo identificado como masculino. O mais interessante disso tudo é que hoje alguns amigos, quando me veem de calças, me perguntam por que não estou com a vestimenta “adequada”: ela, a saia.
Quero deixar claro, não estou levantando uma bandeira ou criando um movimento. Obviamente reivindico o direito de estarmos como acreditamos que podemos estar, seja você como for, gordo, magro, branco ou preto. Essa foi minha forma de ter o meu #prontofalei, meu espaço “sincero”. Quase no melhor estilo autoajuda, a saia me salvou.
Voltando ao passado, sobre a “Experiência nº1” pouco se sabe. Flávio não a relatou, apenas afirmou que não foi interessante. A polêmica “Experiência nº2”, em que ele caminha com boné na cabeça, de forma desafiadora, em sentido contrário ao de uma procissão de Corpus Christi, foi bastante hostilizada. O episódio me arrepia, e não somente pelo choque, mas pela coragem de nos trazer o sentido da vida.
Conduzimos a vida de forma cada vez mais complexa (ou medíocre?), e cada dia há menos sentido no mundo. Prova disso são ataques terroristas como o de 2015 na sede da revista “Charlie Hebdo”, em Paris, e o atentado com coquetel molotov à produtora Porta dos Fundos, em São Paulo, em 2019.
Assim, falar sobre Flávio de Carvalho é buscar uma inspiração para um espaço em que possamos sair da mesmice e viver de forma inteligente. Questionando-se.
Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York
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