Fabiana Moraes
Nada será como antes (e o governo federal ainda não entendeu isso)
Apesar de um atentado terrorista inédito e de um plano de triplo assassinato, a Comunicação da Presidência da República insiste em falar de normalidade democrática e perde oportunidade de disputar discurso extremista
Dia 13 de novembro de 2024: um homem vestido com um terno verde estampado com naipes de baralho, portando ainda um chapéu branco, joga explosivos na estátua que representa a Justiça, em plena praça dos Três Poderes. Impedido pela polícia que se aproxima, ele resolve deitar sobre um artefato e explode a si mesmo. Morre no local.
Dia 19 de novembro: menos de uma semana depois do ato terrorista, a PF descobre um plano de triplo assassinato que seria perpetrado por militares das Forças Especiais, os chamados kids pretos. O plano era matar o presidente e o vice-presidente eleitos, mais um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O nome da ação criminosa: punhal verde e amarelo.
Nas redes sociais oficiais do governo federal — especificamente o perfil do presidente Lula e o da Secretaria de Comunicação, a Secom — o mundo era outro. Apenas sorrisos, apertos de mão, líderes mundiais, um cachorro caramelo. Eram os dias de um grande e importante evento internacional, o G20. Quem circulou por alguns perfis do Instagram presidencial nesse momento permaneceu nos grandes salões atapetados.
Enquanto isso, lá fora, o bicho ia obviamente pegando: com sua histórica e enfadonha má vontade com o Partido dos Trabalhadores, parte da imprensa comercial passou a dar toda atenção aos comentários da socióloga Rosângela da Silva, Janja, esposa de Lula, sobre o assunto. Na falta de uma fala do presidente, foram as declarações da primeira-dama no dia 16 de novembro, durante evento do G20, que preencheram, é claro, o espaço vazio. Fiz um print de tela para ilustrar um pouco do tom adotado:
Mas reparem: já no dia 14 de novembro, quase imediatamente após o atentado terrorista, sete ministros e uma ministra do STF falaram sobre o episódio na abertura da sessão do dia. O presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, fez questão de traçar uma linha do tempo pedagógica sobre a escalada da violência: relembrou o vídeo do então deputado Daniel Silveira repleto de ataques ao STF em fevereiro de 2021, os bloqueios dos caminhoneiros nas estradas, os acampamentos em portas de quarteis com pessoas pedindo intervenção militar, o Oito de Janeiro de 2023. Alexandre de Moraes, um dos alvos da gangue civil-militar que planejou os assassinatos, foi enfático — como pede o momento: “Querem banalizar, dizer que foi um mero suicídio”.
Para coroar, no mesmo 14 de novembro, o ex-presidente, o inelegível Jair Bolsonaro, homem que tem simbolicamente suas digitais no caso, foi a público falar sobre o atentado. Postou uma nota no ex-Twitter pedindo, vejam só, pacificação e respeito às instituições:
“Já passou da hora de o Brasil voltar a cultivar um ambiente adequado para que as diferentes ideias possam se confrontar pacificamente”, diz a nota publicada pelo perfil do ex-presidente. “As instituições têm um papel fundamental na construção desse diálogo e desse ambiente de união”, escreveu. Detalhe: ao portal Metrópoles, ele classificou o homem-bomba Francisco Wanderley Luiz, 59 anos, como “maluco”.
Sua fala não repercutiu na imprensa como a de Janja.
Vocês estão cansadas? Eu também, mas vamos lá: somente — SOMENTE, repito — no dia 21 de novembro, em uma cerimônia tão sexy quanto uma lixa de unha (divulgação do Programa de Otimização de Contratos de Concessão de Rodovias), Lula tocou oficialmente nos dois assuntos — e de maneira indireta, juntando “civilidade democrática” com concessão de estrada. Segue o trecho do discurso:
“Eu queria dizer para vocês uma coisa importante. Vocês estão lembrados que, quando nós disputávamos as eleições, eu dizia que um dos meus desejos era trazer ao Brasil à normalidade, à civilidade democrática. Em que a gente faz as coisas da forma mais tranquila possível, sabendo que você tem adversário político, sabendo que você tem adversário ideológico, mas sabendo que de forma civilizada você perde e você ganha. Você consegue fazer uma coisa, na outra vez você não consegue. Eu queria chamar a atenção de vocês para esse momento histórico que estamos vivendo. Não faz muito tempo que se falar em fazer concessão de estrada nesse país era falar em privatização de estrada. Era uma coisa maluca.”
Olha, sr. presidente, honestamente: coisa maluca é, a essa altura do campeonato, ouvir vossa excelência e sua comunicação institucional insistindo em falar sobre normalidade democrática enquanto, bem perto de vocês, um homem se explode. Enquanto tinha policial federal envolvido em sua segurança servindo como leva e traz de plano de assassinato.
Há um erro grave aí: uma coisa é não termos neste momento a extrema-direita, derrotada no voto, no executivo federal. A outra é entender que todo o multiprocessador de símbolos e discursos que a levaram ao poder em 2018 não está funcionando perfeitamente. Pior: com os atentados que o país passou a sofrer após o Oito de Janeiro de 2023 como agravantes e fermento. Como óbvias luzes de para onde estamos indo.
Toda a comunicação da extrema-direita se apoia em elementos facilmente identificáveis e legíveis. São tangíveis, sensíveis. Ficar repetindo “democracia” não vai ajudar
Vamos lá: para além de uma imprensa que posa de democrática enquanto passa a mão na franjinha de Bolsonaro (ai que vergonha, Folha de S.Paulo), o caldão político aqui fora, no Brasil anormal e paralelo, é composto por roupa de personagem de filmes e quadrinhos, punhal verde-amarelo, estátua da Justiça, bandeira nacional, explosão no coração de um centro de poder. Toda a comunicação da extrema-direita se apoia em elementos facilmente identificáveis e legíveis. São tangíveis, sensíveis. Ficar repetindo “democracia” não vai ajudar. Perguntem para a campanha de Kamala Harris.
O professor João Cezar de Castro Rocha, da UERJ, tem falado há muito sobre isso em livros como “Bolsonarismo — Da guerra cultural ao terrorismo doméstico” (Ed. Autêntica, 2023).
O que mais me impressionou — e me refiro aqui ao episódio terrorista — foi ter jogado fora a oportunidade de falar para a nação em uma data extremamente simbólica como o 15 de novembro, Proclamação da República. Percebam que foi justamente o simbolismo desta data o que motivou o homem-bomba a agir naquele momento. Uma morte inédita cujo sentido foi atacar as instituições da República foi tratada pelo Governo Federal como se estivéssemos não em um país que passou pelos ataques que passamos recentemente, mas em uma asséptica sala de cirurgia.
Mandei um zap aflito para o pesquisador Paolo Demuru, autor de livros como “Políticas do Encanto — Extrema direita e fantasias da conspiração” (Elefante, 2024) e “Um Bufão no Poder: Ensaios sociossemióticos” (Confraria do Vento, 2022, escrito com Yvana Fechine). Quis ouvir quem está dedicado a esse tema tão urgente, mas tratado com punhos de renda pelo executivo federal.
Para meu azar — adoraria estar errada — ele também estava impressionado com o silêncio institucional. “Estamos diante de mais uma ocasião perdida. Era uma oportunidade única para retomar o discurso da memória da ditadura e ligá-lo à gravidade da tentativa de golpe atual. Fazer reemergir algo que ainda está escondido na opinião pública e tentar mostrar como isso tem uma história e está atrelado a toda essa memória apagada. Entendo que é uma ocasião ainda mais perdida porque estamos vivendo um momento de reminiscência coletiva sobre a ditadura por conta do filme ‘Ainda Estou Aqui’, que está bombando, está prestes a concorrer ao Oscar e traz a memória do Rubens Paiva”.
Paolo acerta ao identificar no filme de Walter Salles uma excelente estratégia discursiva: é um filme que fala da ditadura, mas coloca a família no centro. Foca na luta de uma mãe, nas relações de cuidado e afeto entre familiares, na solidariedade. Exibe, em close, uma família progressista que também é, para usar um termo caro a uma vasta parcela da população, “gente do bem”. Universaliza aí questões trazidas fartamente no caldo simbólico da direita e extrema-direita.
Também ouvi a pesquisadora e professora da UFBA Nina Santos, que tem feito das mais instigantes análises sobre a percepção da realidade a partir da mudança de produção do que estamos vendo e ouvindo nas redes sociais:
“Eu acho que está claro que o discurso atual do campo progressista não está funcionando. Do meu ponto de vista, tanto as eleições brasileiras quanto a americana mostram isso. Há um distanciamento entre o que o campo progressista propõe e o dia a dia da maior parte da população, para quem a ideia de democracia pode ser muito abstrata. E acho que precisamos nos distanciar de uma visão de que isso está acontecendo simplesmente porque as pessoas estão sendo manipuladas e enganadas por fake news. Precisamos ver que tem uma mudança mais estrutural trazido pelo mundo digital que influencia na maneira como as pessoas se relacionam, se veem, veem os outros, organizam suas demandas e necessidades. Não há ainda um discurso progressista consistente para isso, um que aponte para frente e não para trás. Isso torna a capacidade de reação mais tímida e fraca.”
Colegas jornalistas que cobrem o poder em Brasília me disseram que o governo preferiu investir toda sua energia no G20 — onde importantes acordos foram fechados, como no caso da parceria Brasil e China. Em um mundo perfeito, seria a estratégia correta. Mas, repito, agora tem gente se explodindo na frente do STF.
“Mesmo que Lula não tivesse se pronunciado — e acho que ele deveria — o Ministério das Comunicações não poderia ter perdido esse gancho. Havia muitas possibilidades de falar sobre os golpes, de construir uma campanha discreta sobre como eles destroem a família brasileira os trabalhadores, a vida das pessoas comuns, mais capaz de convencer pessoas. Fazer essas pontes discursivas e narrativas, seria não só urgente, como extremamente necessário e sagaz”, diz Paolo Demuru, para quem o sucesso da campanha do Vida Além do Trabalho (VAT), encampada pelo vereador Rick Azevedo (PSOL-RJ), que propõe dois dias de folga e cinco de trabalho, é um exemplo bom sobre como ampliar pautas mais progressistas para um público amplo.
Mandei um e-mail para a comunicação institucional do Governo Federal com algumas perguntas assombradas. Reproduzo a primeira aqui:
O Brasil assistiu a um ato terrorista inédito no último dia 13 de novembro, com um homem se explodindo na praça dos três poderes. O mesmo vestia roupas relacionadas a uma comunicação comum em grupos da extrema-direita, o Coringa. Dois dias depois, comemoramos a Proclamação da República. Em um contexto com tantos simbolismos, a comunicação do presidente não cogitou um pronunciamento nacional? Por quais razões isso não aconteceu?
A resposta:
Prezada Fabiana,
Cabe às autoridades policiais falarem sobre investigação. O ministro da Justiça concedeu coletiva de imprensa sobre os processos. O presidente da República mencionou os casos dia 21 de novembro em seu discurso no link a seguir: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2024/11/discurso-do-presidente-lula-na-divulgacao-do-programa-de-otimizacao-de-contratos-de-concessao-de-rodovias
É isso aí, galera. Vocês também sentiram o frio vindo da sala de cirurgia?
Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.
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