Marcello Dantas
Sobre Morcegos e Homens
A única forma de enfrentar esse desafio é entendendo que a opção aqui é mudar ou mudar
Homens e morcegos originam do mesmo animal ancestral, 80 milh?es de anos atrás. Morcegos são tão mamíferos como nós, tem gestação, dão a luz, amamentam, cuidam da sua prole. Em número de espécies, morcegos representam 20% de todos os mamíferos que existem. E apesar de não haver um número preciso é provável que hajam mais morcegos do que homens no planeta. Morcegos possuem a capacidade que todos os homens gostariam de poder ter: eles voam. Em compensação, estão condenados à noite, às trevas e às cavernas. E os humanos, por sua vez, reinam soberanos sobre a superfície, em plena luz do dia — construíram um império sobre a terra. Homens têm repulsa e rejeitam enfaticamente os morcegos, que por sua vez revidam com a maior ameaça possível a um humano, vampirizar nosso sangue. Mas sim, somos parentes.
O ato inaugural do século 21, aconteceu de forma não documentada entre um homem voraz e um morcego em um mercado de comidas em Wuhan na China. Esse reencontro aconteceu no fim de 2019, face a face entre duas espécies separadas a milênios. Nesse momento houve uma troca de mensagens entre os dois organismos. Entre a repulsa e a atração mútuas um código migra de um para o outro. Esse código, que até então não tinha nome, é apenas uma sequência genética relativamente curta, um vírus, provavelmente a forma de inteligência mais sintética que se tem notícia. Essas pequenas linhas porém carregam em si impactos gigantescos para a história da espécie humana. O vírus do morcego dizia claramente: “eu fui relegado à escuridão, mas você não poderá mais voar. Pare agora de voar”. E com uma autoridade imperial nunca antes vista, o feitiço fez os avi?es de todo o mundo aterrisarem em questão de semanas. O homem obedeceu e parou de voar. E o morcego reestabeleceu a ordem original das coisas.
Reconheci que a velocidade nos entorpece e nos distancia de coisas que são essenciais, que só uma freada dessas revela
Se quisermos voltar a circular livremente pela superfície, temos que reaprender a respeitar os lugares de todas as espécies que coabitam esse planeta. As espécies somadas possuem um arsenal de vírus com capacidade para destruir o planeta muito mais vezes do que todas nossas armas atômicas juntas.
Nossas mentes foram infectadas por esse vírus e estou me dando conta da quantidade de sabedoria que ele carrega dentro de suas curtas linhas. Sofrendo com sintomas reais e outros psicossomáticos, passei a sonhar de forma compulsiva, sempre com a imagem do morcego. Me permiti vivenciar o amor pelas minhas crianças, parceira, animais e plantas de uma outra forma. Reconheci que a velocidade nos entorpece e nos distancia de coisas que são essenciais, que só uma freada dessas revela. Esse vírus é uma oportunidade derradeira de mudança que nos está sendo apresentada. Sim, tudo o que achávamos ser impossível é possível e desconcertantemente simples de ser feito. Basta uma voz de comando clara e uma ameaça presente para alcançar o consenso.
Mas é a dimensão onírica que mais me interessa nesse momento. O resgate coletivo do sonho é algo importantíssimo. Quando nas ultimas décadas nos distanciamos da dimensão do sonho, perde-se a bússola do futuro. Como se pode realizar sonhos quando não os sonhamos. Os sonhos que tive sobre influência do vírus, foram os mais impressionantes, neles quase sempre o personagem do morcego voltava, sobrevoava e pousava na minha frente, de cabeça para baixo como os morcegos sempre fazem. O olhar do morcego me fitando de ponta a cabeça me fez entender como ele me via, pois para o seu ponto de vista quem estava invertido era eu e consequentemente todo o meu mundo. Essa mudança de perspectiva me fez entender que, sim, alguma coisa está fora da ordem e, provavelmente somos nós. O morcego no meu sonho sempre me dizia “bem vindo”, como se na realidade fossemos nós que havíamos invadido o mundo deles. Precisamos entender que não temos como erradicar esse vírus; nós invadimos o mundo dele e nesse mundo as regras são ditadas pela força de uma existência milenar. Ficou clara para mim a precariedade da ciência, a irrelevância da política e a inutilidade das forças armadas, estamos em meio a uma batalha para a qual nos encontramos verdadeiramente despreparados.
A grande oportunidade que essa situação está nos dando tem a ver com a nossa nova permeabilidade a aceitar novas ideias, métodos e possibilidades. Ver a beleza nos olhos de um morcego é um desses ritos simbólicos que precisamos viver. A única forma de enfrentar esse desafio é entendendo que a opção aqui é mudar ou mudar. A única possibilidade que nos resta é pacificar esse dialogo com o lado B, a caverna, as trevas, as forças escuras, os exus e os morcegos.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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