Maria Homem
Balanço do Dia dos Namorados
É tanta expectativa em torno da nossa boa e velha (e inconsciente) demanda de amor que a gente quase nunca sai feliz e realizado
É curioso o efeito que pode provocar uma data. Mesmo que a gente saiba que é uma data aleatória e comercial. Existe um período pré e um pós-Dia dos Namorados.
No antes – que pode durar uns dias ou mesmo uns meses – você pensa o que vai fazer com seu namorado ou namorada, que presente vai dar, onde vai jantar ou como vai surpreender a pessoa. Ou você se pergunta se vai passar de novo esse dia sem namorado e traça planos para arrumar um.
O dia propriamente dito pode ser muito bom e profundo. Se você tem alguém para amar, isso é uma bênção por si só: desenvolver a capacidade de amar e encontrar um objeto sobre o qual esparramar esse amor não é trivial. Se a pessoa te amar também, aí é quase milagre. Estou falando aqui de amor mesmo, conexão a mais autêntica possível com outro ser humano.
Mas pode ter uma situação em que esse dia vira uma trabalheira. Você vai ter que produzir um texto comovente e uma imagem não muito clichê para fazer um post dizendo para todo mundo o quanto você ama a pessoa x, que você marca. E aí ela faz a mesma coisa e pode acontecer de você ficar um pouco chateado achando que a retribuição foi fraca e um pouco menos declarativa que a sua e a pessoa não te ama tanto quanto deveria ou você achava ou… e aí entramos no circuito imaginário da autoestima e insegurança que todos conhecemos.
É tanta expectativa girando em torno da nossa boa e velha (e inconsciente) demanda de amor que a gente quase nunca sai plenamente feliz e realizado da situação. Às vezes a noite pode desembocar numa DR ou numa cara amuada que diz: eu queria mais e minha demanda é infinita mas você não consegue me dar nada além desse vale-presente preguiçoso. Que vontade de chorar.
Você pode estar do outro lado dessa mesma cena e sentir que a pessoa nunca está satisfeita: não importa o que você faça, ela sempre parece à beira de um ataque de nervos.
Desenvolver a capacidade de amar e encontrar um objeto sobre o qual esparramar esse amor não é trivial
As pessoas casadas há mais tempo tentaram fazer planos comemorativos mas acabou a energia para grandes rituais simbólicos. Deram um selinho básico e falaram algo como “Ai amor justo hoje trabalho até tarde”. Ou “A gente tem mesmo tanta coisa coisa pra fazer e cuidar da casa, da criança, deixa pra lá”. A vida escorreu entre os dedos e no final ambos chegamos tão cansados que melhor não complicar. Se faz um acordo tácito: tomar um banho quentinho e dormir o mais rápido possível.
Tem também o dia de quem não tem namorado e faz uma coisa qualquer se esforçando para não pensar nisso. Ou faz questão de ficar em casa como um dia qualquer porque Dia dos Namorados é a coisa irrelevante que inventaram no planeta, “gatilho capitalista para otários” ou algo assim, como nos alertam os memes do momento.
O fato é que, de vez em quando, sutil, devagar, ao longo do dia, brota o pensamento incômodo: você nega mas no fundo gostaria sim de ter uma companhia. Não precisa ser uma paixão, não vamos exagerar, sabemos muito bem que o amor romântico acabou etc e tal. Mas que você queria ter alguém.. Ah será? Aliás, talvez não queira não. Viva a liberdade plena.
Alguns solteiros saíram para beber com os amigos e desencanar de datas muito pesadas. Afinal, pra que ficar pensando demais sobre que vida eu tenho levado e com quem eu gostaria de partilhar a minha história?
Às vezes, aparece nessa época um nó estranho, talvez um vazio. A falta de algo, de alguém. Ou a falta, simplesmente. Uma sensação de incompletude, de estar só e de viver a vida assim, de forma um pouco mecânica. Aquele fazer fazer fazer que não leva a lugar nenhum. Não não, leva, olha só como estou bem e subindo na carreira. E então me lembro: essa coisa de namoro, casamento e família deus me livre e guarde, que atraso, que trabalheira.
Mas aí, no final desse ciclo, exausto, volta aquela sensação incômoda e o vazio pulsa. Ele lateja.
Não dá mais para esconder. Você queria ter a coragem de arriscar algo.
Porque uma relação real é sempre arriscada.
Saber disso é o primeiro passo para um Dia dos Namorados diferente no ano que vem.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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