Atravessando o Deserto Emocional
Em novo livro, psicanalista Thais Basile explora o impacto duradouro de relações familiares problemáticas nas nossas emoções e comportamentos
Existe um fundo considerável de verdade quando dizemos que boa parte daquilo que somos, nossos comportamentos, traumas e emoções, vêm da nossa formação e, mais especificamente, da relação com a família. É sobre esse impacto constante e duradouro — mas muitas vezes imperceptível — das dinâmicas familiares nas nossas vidas e em como subvertê-lo que a psicanalista Thais Basile se debruça em seu novo livro, “Atravessando o Deserto Emocional” (Paidós, 2024).
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Essas questões são tão amplas e onipresentes que a autora optou por iniciar a obra com uma autocrítica. Numa breve introdução, Basile aponta muitas das inseguranças que sente ainda hoje, incluindo a de não ser levada a sério como profissional por compartilhar muitos de seus conhecimentos nas redes sociais. “Afirmei mentalmente que ‘eu não sou percebida como uma profissional séria, não sou digna de escrever um livro dessa magnitude'”, pontua.
Mas, em seguida, reconhece que boa parte desse sentimento vem da infância, época em que costumava se agarrar ao pequeno reconhecimento de ser a melhor da sala na escola, e em que era hiper-responsabilizada pelo bem-estar da família desde a morte da irmã. Um estado de coisas que gerou problemas como ansiedade e isolamento. “Era exatamente assim que eu me sentia: isolada do mundo. Meus pais constantemente me diziam que eu estava exagerando e apenas sendo dramática.”
Muitos desses padrões têm a ver com o fato de que, como aponta a própria psicanalista, “tendemos a nos amar e a amar os outros da mesma forma como fomos amados pelas primeiras e mais importantes pessoas da nossa vida”. Ou seja, por mais que idealizemos a família, como se vivêssemos dentro de um improvável comercial de margarina, os problemas dessas relações podem fincar raízes em nós pelo resto da vida. Essa naturalização pode ser responsável até por aceitarmos relações tóxicas ou abusivas no seio familiar, às quais muitos dariam um basta em qualquer outro contexto. São algumas das questões que a autora desenvolve no trecho a seguir, selecionado por Gama.
Família como lugar sagrado
Quase sempre é agridoce falar em infância, porque ela costuma estar atrelada a pessoas que chamamos de família. E, quando falamos de família, necessariamente estamos falando de cuidado, ou da falta dele. Por conta do meu ofício, tenho acesso à história familiar de milhares de pessoas adultas, a maioria mulheres. Muitas acreditam que o caos, os gritos, as agressões físicas, a invalidação, o descrédito, as ofensas, as ameaças, as adicções, a negação, a negligência ou o abuso só aconteceram em suas próprias famílias. Elas se sentem solitárias quanto ao rastro de culpa, impotência e insegurança que a infância deixou nelas. Muitas só gostariam que essas emoções conflituosas desaparecessem.
Todos queremos nos sentir pertencentes e ter uma história bonita para contar a nosso respeito. Por isso, em alguma medida, todos internalizamos o ideal de família de comercial de margarina, e muitos de nós fazem de tudo para manter essa fantasia intacta. Desejamos que nossa família seja vista somente como boa e saudável, porque nossa própria identidade está atrelada a isso. Pode ser muito difícil lembrar, reconhecer e nomear o que aconteceu quando éramos crianças com um olhar mais amadurecido e menos floreado, porque a romantização das relações familiares é o caminho mais aceito socialmente. Uma forma bastante eficaz de manter essa romantização de pé é recalcar ou cindir — “esquecer”, sem esquecer de fato, relegando ao inconsciente — tudo que nos feriu.
Em última instância, ninguém quer ser a pessoa que nomeia os problemas familiares, descumpre a lealdade, sai da norma, faz o contrário do esperado, quebra o silêncio e acusa a realidade que viveu, porque sabe-se bem o que pode vir a partir disso: invalidação, julgamento, rejeição, angústia, abandono. Além disso, quem ousa trazer à tona esses problemas tem que se responsabilizar pela própria história e trabalhar duro para não repetir cegamente o que viveu e para lidar com os sintomas decorrentes disso. Normalmente vem junto uma tonelada de culpa e de dúvida: “Será que não estou exagerando?”, “Será que o que aconteceu é mesmo um problema?”, “Estou sendo ingrata?”.
Assumir que, para além das coisas boas, dos momentos alegres e dos conflitos normais, a família viveu questões problemáticas e adoecedoras é também assumir que o amor ali não foi construtivo o suficiente e que o desamparo existiu. E como é difícil nos havermos com nosso desamparo!
Todos internalizamos o ideal de família de comercial de margarina, e muitos de nós fazem de tudo para manter essa fantasia intacta
Quando não conseguimos tirar nossa família do pedestal e vê-la com olhos mais humanizados, reconhecendo seus problemas, é comum que continuemos repassando as questões que ficaram acobertadas para as relações que temos no presente, e isso reverbera inclusive no nosso autocuidado, por meio da introjeção dos padrões aprendidos e da repetição transgeracional traumática. Saímos da infância, mas a infância não sai de nós: deixamos a casa dos pais fisicamente, mas, do ponto de vista psíquico, ainda podemos estar morando lá, reatuando tudo que sentimos e internalizamos nos tempos primórdios da nossa existência. A herança transgeracional é parte fundamental do psiquismo de todos nós, porque não estamos soltos no tempo, somos seres de contexto e história. É a família que repassa o legado do ódio e do medo não ditos, pois esses afetos quase sempre não são permitidos na vida cotidiana; porém, eles não evaporam, são reprimidos e reaparecem na forma de sintomas repassados através das gerações.
Para que os não ditos não venham à tona, a família nos incute a ideia de que o amor é apenas um sentimento, que não tem relação com ações. Por causa disso, muitos de nós fomos submetidos, e infelizmente continuamos nos submetendo, a situações que, se ocorressem entre amigos ou namorados, seriam pontuadas socialmente como abusivas ou tóxicas, mas que, como acontecem dentro da sagrada instituição da família, não nos permitimos ver assim. Aceitamos passar por isso porque entendemos que, se o outro diz que ama, “tá amado”, mesmo que muitas ações digam o contrário. E, ao nos submetermos, queremos submeter os outros. Que atire a primeira pedra quem nunca silenciou, mesmo sem perceber, alguém que trouxe problemas familiares sérios à conversa, dizendo algo como: “Mas é sua mãe, você precisa entender”, “Seu pai não fez por mal”, ou “Eles te amam, só querem seu bem”.
A narrativa de que a família sempre sabe o que é bom para a prole, de que suas dinâmicas são sempre saudáveis e de que pais são heróis cujas intenções sempre são boas faz com que comportamentos prejudiciais sejam justificados e até incentivados. Se “família é tudo”, o que fazem as pessoas que não encontram reciprocidade, afeto e apoio dentro dela?
No que diz respeito à dinâmica familiar, existem grandes forças atuando para que as pessoas, mesmo depois de adultas, se adéquem, se calem, guardem para si o que se tornam segredos cheios de culpa, fazendo um esforço enorme para que esse recalque não venha à tona, ou para que ninguém descubra suas angústias e sintomas, que acreditam ser “defeitos de fábrica”. Muitos passam a vida inteira acreditando que eles mesmos eram o grande problema, que são “quebrados” por não se adequarem, por não caberem naquele grupo que só queria seu bem, se culpando por terem “nascido tão errados”.
Se “família é tudo”, o que fazem as pessoas que não encontram reciprocidade, afeto e apoio dentro dela?
Muitas pessoas ainda permanecem em lealdade, identificação — quando se veem neles — ou fusão adoecida com os pais, justificando seus atos, protegendo-os ou colocando-os em pedestais — que são mais como um altar de dores não ditas —, sem conseguir nomear o que realmente viveram, porque teriam muita dificuldade em ser percebidas como rebeldes, ingratas, egoístas, mentirosas. Se o fizessem, teriam que sentir culpa, revirar sua estrutura psíquica, questionar a própria imagem e identidade, aceitar a responsabilidade de construir algo que sirva mais a si do que à família, lidar com a vulnerabilidade e se implicar em construir formas mais saudáveis de amar.
Muitos filhos, numa atitude de aparente compaixão — mas que em última instância é apenas um mecanismo defensivo —, têm muito mais tolerância com as ações violentas e negligentes dos pais do que os pais tiveram com eles na infância, quando comportamentos normais para seu nível de desenvolvimento foram tratados como “crimes terríveis”. Vários justificam os atos de violência que sofreram dos cuidadores e os isentam de responsabilidade em virtude da infância difícil que estes tiveram, das privações e dos abusos que viveram. De fato é importante entender o que pode ter levado nossos cuidadores a agir como agiram, mas nenhuma violência pode ser justificada; se fazemos isso, estamos nos roubando a chance de elaborar esses atos e de interromper essa cadeia perigosa, que pode continuar se repetindo. Levar adiante essa mistura de amor e violência é extremamente perigoso para a nossa saúde e para a saúde de nossas relações.
A psicanálise nos mostra que tendemos a nos amar e a amar os outros da mesma forma como fomos amados pelas primeiras e mais importantes pessoas da nossa vida. Se vivemos abuso e negligência, essas experiências também moldam a maneira como nos vemos, como lemos o mundo e como vivemos nossas relações. O cuidado que cada um de nós recebeu de seus primeiros cuidadores deixa um rastro, tem uma história própria: podemos ter internalizado o que recebemos como cobrança, como invasão, como abandono, como resto, como vazio, ou como violência; tudo depende de como experienciamos e significamos esse afeto.
O amor também é internalizado de acordo com a maneira como fomos mais olhados e valorizados: procuramos repetir nas outras relações os comportamentos que nos trouxeram um olhar mais constante dos nossos pais. O problema é que nem sempre fomos reconhecidos e vistos quando agíamos de forma benéfica para nós mesmos; muitas vezes éramos considerados boas crianças quando nos adequávamos ao que eles precisavam de nós. Compreendendo esse mecanismo, fica mais fácil entender por que na vida adulta continuamos a nos comportar de maneira a agradar aos outros, nos silenciamos e nos sabotamos em nome do pertencimento ou de ganhos mínimos.
Tendemos a nos amar e a amar os outros da mesma forma como fomos amados pelas primeiras e mais importantes pessoas da nossa vida
É importante pontuar que amor nunca justifica violência e negligência — nem as apaga —, mas muitos de nós internalizamos na infância que essas atitudes danosas faziam parte do amor, e quando adultos temos dificuldade em separar comportamentos aceitáveis dos não aceitáveis para nos proteger.
A importantíssima intelectual, professora e escritora bell hooks nos conta lindamente em Tudo sobre o amor: novas perspectivas que o amor vai muito além do ditame patriarcal de prover cuidado a alguém: ele contém as dimensões do compromisso, da confiança, da responsabilidade, do respeito e do conhecimento. Onde existe abuso, não pode existir amor, ela diz, e essa é uma verdade com a qual nem sempre sabemos lidar, por colocar em xeque tudo o que aprendemos sobre amor na nossa família, em que os fins (boas intenções) justificariam os meios (abusos e negligências). É importante ter coragem de olhar para o que pode vir a ser o amor em nós, a partir não só da nossa subjetividade, mas também de onde ela foi forjada: uma cultura profundamente desigual e adoecida.
- Atravessando o Deserto Emocional
- Thais Basile
- Paidós
- 256 páginas
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