Coluna da Fabiana Moraes: O que entrar na casa dos outros me ensinou — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

O que entrar na casa dos outros me ensinou

Entrar em lares repletos de desejo, violência, raiva e esperança, permitiu com que eu pudesse, de miúdo em miúdo, enxergar melhor esse tal povo brasileiro

27 de Março de 2024

Quando entrei na casa de Severina, aprendi sobre a violência do abandono e a contradição.

Quando entrei na casa de Lohanne, aprendi mais sobre o gesso que moldava o meu olhar.

Quando entrei na casa de Joicy, aprendi que a pobreza afetiva é tão voraz quanto a pobreza material.

Quando entrei na casa de Maria Janete, aprendi o quanto podemos, ao sermos o tempo todo tratadas como subservientes, nos enxergar como não merecedoras do amor.

O fato é que meu trabalho me ofereceu um passe que é tanto privilégio quanto salvação: entrar continuamente na casa dos outros. Ou melhor: na maioria das vezes, entrar na casa das outras. Há 25 anos exercendo essa profissão que ditador, autocrata ou negacionista nenhum gosta, sentei em centenas de bancos, sofás, chão, redes, cadeiras. Presenciei silêncios, brigas, conversas, disputas, reconciliações, velórios, aniversários.

Meu trabalho me ofereceu um passe que é tanto privilégio quanto salvação: entrar continuamente na casa dos outros

A maioria dessas casas estava nas periferias de Recife, Camaragibe, Olinda, Vitória de Santo Antão; nos distritos da mata norte ou da mata sul; nos sertões de Alagoas, Bahia, Sergipe, Ceará. Abracei meu trabalho como se abraça uma jangada: sabia que ela me levaria às vezes a destinos sabidos, às vezes para a deriva. Mas era, sempre, o descobrimento do universo.

Entrar na casa de muita gente, em lares repletos de desejo, violência, raiva e esperança, permitiu com que eu pudesse, de miúdo em miúdo, enxergar melhor esse tal povo brasileiro. Obviamente, ele também escapa aos meus olhos: sua mutabilidade contínua não permite que um retrato de ontem possa ser lido exatamente como o retrato de agora. Ao mesmo tempo, nas imersões heterogêneas de desejo, violência, esperança e raiva, consegui entender que dentro da gente tem ligas que se afrouxam e se apertam, embaraçadas, às vezes esgarçadas, às vezes rompidas. Vão para a barriga, nos circundam, nos libertam, às vezes entalam em vários nós no pescoço. São ligas feitas de vontade: de ser amada, de ser feliz, de ser cuidada, de gozar, de olhar, de crescer. Nunca encontrei ninguém gorda ou magra, cabocla ou galega, proprietária ou explorada, que topasse abrir mão dessas vontades.

O que distingue essas pessoas de outras pessoas é que algumas não entendem que seus desejos não podem pressupor a dor do outro.

Severina, Lohanne, Joicy e Maria Janete doem e doeram. Uma vez elas abriram suas portas para mim, e cada uma me mostrou um pedaço do mistério que é estar aqui, ou melhor, o pedaço de mistério que é insistir em permanecer. Retracei o caminho que me levou até as salas de suas casas há poucos dias, depois de ser chamada para falar com um grupo até então desconhecido por mim (O Lugar, uma boa surpresa). Refletir sobre o significado desses encontros foi importante para olhar o Brasil do qual faço parte agora.

Severina vivia em uma casa pequenina cujo quintal era formado por grandes rochas, presenças comuns no agreste pernambucano. Estava livre depois de mais um ano confinada em um presídio: foi levada por defender a si e à filha mais nova. O pai da agricultora a estuprou durante décadas, engravidando a própria filha 12 vezes. Quando ele quis fazer o mesmo com a menina (que era sua filha e neta), quando ele disse que mataria alguém para satisfazer sua vontade, Severina encomendou sua morte. A reportagem está aqui. Esse encontro me ensinou muita coisa: a mais óbvia é a absoluta desumanização à qual uma mulher negra e pobre pode ser continuamente exposta (como veremos no caso de Maria Aparecida, em breve). Durante décadas, não teve vizinho, família ou Estado que protegesse Severina do próprio pai, o “cabra macho”. Mas teve uma outra lição, e ela me fez entender sobre a necessidade de lidarmos, sem assombro, com nossas contradições. Na primeira vez que entrei na casa, vi, na parede da sala, uma fotomontagem. Mostrava um homem e uma mulher. Concluí que eram mãe e pai da agricultora. Mas quando comentei sobre a imagem, soube que a mulher era a própria Severina. “Eu que mandei fazer.”

(Assombro. Como podia?)

“Foi para que meus filhos saibam que têm pai e que têm mãe”. No meio de todo horror, Severina queria delicadamente dar um presente aos seus também irmãos: que eles experimentassem, ainda que simbolicamente, alguma normalidade. Nem que para isso Severina precisasse explicar continuamente aquela foto-contradição.

Reprodução / Jornal do Commercio

Três anos antes de visitar a agricultora na zona rural de Caruaru, fiquei durante algumas horas circundando a casa de Lohanne. Ela morava em uma pequena cidade, Santa Terezinha, no sertão de Pernambuco. Eu escrevia uma reportagem que se referia aos cem anos da morte de Euclides da Cunha, autor de Os Sertões. Dois mil e nove. Lohanne era conhecida na cidade como Loirinha, menção à juba galega que ostentava ao lado de saltos altos e jeans mais apertados. Era uma travesti meio tímida no meio da terra vendida continuamente como a do “cabra macho”, aquele protegido por todos. Por isso, em algum lugar na minha cabeça, havia a sensação de uma ameaça difusa voltada contra mim e especialmente contra ela. Caminhamos pelas ruas da cidade, conversamos, fizemos fotos em frente à sua casa. Olhares curiosos: o que o carro da reportagem fazia ali? Quando ela me convidou para entrar em seu lar, estanquei: sabia que seu pai estava ali, seu irmão também. No fim, meu receio era isso: a proximidade dos homens. Mas Lohanne me tranquilizou. Entramos, seu pai nos cumprimentou e continuou vendo TV. Ela colocou a faixa de Miss Gay recém-adquirida em um concurso e sentou em um sofá perto dele. Quando saí da casa de Loirinha, entendi que meu medo era também meu pré-conceito: não pressupor que, ali, no meio do sertão, uma família convivia tranquilamente com a filha travesti. O “fora do comum” naquele episódio, era somente o meu olhar.

Reprodução / Jornal do Commercio

Com Joicy foi diferente. Pessoa transexual também vivendo em uma cidade miúda do interior pernambucano, ela não dividia sua casa precária com ninguém da família: na verdade, preferiam uma certa distância dela. Às vezes por falta de entendimento, às vezes por falta de bem querer, às vezes por falta de paciência. Era alguém que raramente silenciava quando era confrontada, e não estamos muito acostumadas a isso. Fiquei durante horas, vários dias, em seu pequeno sofá de dois lugares, na sala que ainda guardava uma motocicleta, uma cômoda, uma cadeira e um espelho. Era lar e salão de beleza. Moradia e meio de vida. Com aquela Honda básica, Joicy passou sete anos cruzando quase 500 quilômetros, ida e volta, entre o distrito de Perpétuo Socorro e Recife. Na capital, fazia o acompanhamento para realizar a cirurgia de remoção do pênis e construção de um canal vaginal. Um dia, entendi que todo aquele esforço tinha outra razão de ser. Não era somente a conquista de um corpo, não era somente um novo começo, não era uma frase meio pronta e “empoderadora” que eu tinha na cabeça. Joicy estava apaixonada. Aquela saga que ela atravessava era também uma prova de amor, uma mostra de que estava disposta a mudar muita coisa por ele. Mas ela continuou sozinha — e ainda permanece assim. Entrar na casa de Joicy me mostrou o quanto sua pobreza material estava entrelaçada a uma outra pobreza, a afetiva. Quando a conheci, meses antes, acreditei que era a primeira que ela queria derrotar. Mas eu estava enganada: para continuar insistindo, ela queria, ali, conquistar finalmente um amor.

(…)
Amor, aliás, era algo não dito na casa de Maria Janete, onde estive há 11 anos, em um mês de março, pela manhã. Antes de cruzar a porta, eu havia conhecido sua filha, Maria Aparecida. Li sobre a última em um processo criminal que tratava sobre do seu assassinato. Foi lá que achei o endereço da primeira. Eu produzia uma reportagem sobre crimes contra mulheres e havia escolhido, em uma tentativa de falar sobre a divindade de todas elas, trazer as histórias daquelas batizadas com os nomes da mãe de Jesus. Depois de nos apresentarmos a Janete, eu e a fotógrafa Hélia Scheppa entramos na casa: me sentei no pequeno sofá que logo foi ocupado pelos irmãos e irmãs de Maria Aparecida. Duas histórias foram contadas simultaneamente ali: uma em ritmo lento, na fala baixa, informava quem era Aparecida, como ela nasceu, o que ela gostava de comer, como ela casou, etc. A outra história irrompia vez em quando e era contada com muita raiva. A primeira era relatada por Janete. A segunda, por Rafaela, irmã mais velha de Aparecida. Ela dizia o que a mãe não conseguia verbalizar, jogava toda luz na violência extrema — e naturalizada — pela qual Maria Aparecida passou até ser morta a facadas pelo pai de suas duas filhas. Formavam uma espécie de duo, e daquelas vozes eu consegui entender parte do que se passava ali. Rafaela dizia o que Janete não conseguia dizer, ou melhor: Rafaela não permitia que as surras na sua irmã fossem encaradas como normais, e a cada lembrança de um espancamento ela nos informava que sua irmã poderia estar viva caso o agressor tivesse sido afastado dali. Mas ele não foi: era irmão do próprio padrasto da jovem, o que tornava o crime ainda mais insuportável. Depois de quase duas horas, eu conversava somente com Janete perto da porta de entrada da casa. Hélia pediu para fotografar a diarista segurando a imagem de Nossa Senhora Aparecida que havíamos levado para deixar com a família, caso quisessem. Usando tranças longas e um boné, a mãe de Aparecida segurava a santa de gesso, cujo rosto é preto como o da moça assassinada, e posava para as fotos. Desde o começo de nossa conversa, eu havia reparado como ela chorava de forma contida, silenciosamente, enquanto falava da filha. Escutei Hélia informando que tinha terminado de fazer as fotos, e logo Janete se virou para me entregar a santa vestida de azul. Quando eu disse que não levaria a imagem comigo, que era dela, o choro domesticado sumiu: Maria abraçou forte a Nossa Senhora e começou a niná-la como se fosse um bebê. Ela era, ali, sua filha. O abraço apertado na santa/filha, o choro forte, o tempo longo de olhos fechados: tudo aquilo, para mim, era um pedido de desculpas. Mas era principalmente a explicitação de um carinho, de um amor, que nem Janete nem Aparecida (e nem eu, durante muito tempo) entendiam que podiam ser sentidos, vividos e demonstrados por elas. Carinho e amor dos quais elas eram merecedoras, e extravasar isso publicamente era uma confirmação dessa possibilidade.

Ninguém continuamente ferida e desrespeitada (pelo racismo, pela falta de assistência básica, pela violência, pela transfobia, etc) consegue semear autoestima

Ninguém continuamente ferida e desrespeitada (pelo racismo, pela falta de assistência básica, pela violência, pela transfobia, etc) consegue semear autoestima. Essa é uma questão que toda pessoa que critica o “ressentimento” deve entender.

Reprodução / Jornal do Commercio

O gesto de Maria Janete me fez pensar no quanto a naturalização da violência está conectada a um quase auto-ódio por nós mesmas, vistas historicamente como feitas para servir. Mas naquele momento, naquelas horas falando sobre sua filha, ouvindo a revolta de Rafaela, olhando para a divindade que tinha nos braços, Maria permitiu que o que sentia fosse público, e não contido e domesticado. As suas ligas eram as minha ligas: a vontade de ser amada, a vontade de amar. Ela, Joicy, Lohanne e Severina: todas doíam, mas esperavam o afago.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação