Trecho de Livro: A Vingança É Minha, de Marie Ndiaye — Gama Revista

Trecho de livro

A Vingança É Minha

Romance da vencedora do Goncourt Marie Ndiaye coloca protagonista, uma advogada mediana, para lidar com mistérios do presente e do passado

Leonardo Neiva 16 de Fevereiro de 2024

“O homem que entrou tímido e quase amedrontado em seu escritório, no dia 5 de janeiro de 2019, dra. Susane logo soube que já o encontrara”. A sinuosa frase inicial de “A Vingança É Minha” (Todavia, 2024), mais novo romance da vencedora do Goncourt — maior prêmio literário da França —, Marie Ndiaye, resume quase à perfeição o principal conflito que acompanha a protagonista, identificada ao longo do livro apenas como dra. Susane.

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Advogada de talentos medianos, que se limita a cuidar de casos inexpressivos para manter seu modo de vida confortável e de pouco destaque, ela passa a ser consumida por dúvidas e contradições. Norteada pela certeza de que seu novo cliente, um homem atraente e abastado, fez parte de seu passado, acredita ter ficado algumas horas no quarto dele quando jovem — os detalhes dessa visita seguem borrados, talvez propositalmente, por sua memória.

Susane se vê também cada vez mais enredada no caso da esposa do cliente, uma mulher acusada de matar os três filhos do casal. Mas afinal, por que uma família rica e influente buscaria a defesa de uma advogada de tão pouco renome?

Num estilo quase sempre tortuoso como o da frase que abre a obra, com tradução de Marília Scalzo, a autora estabelece um mistério tipo whodunnit em que o leitor tem a impressão de estar constantemente adentrando a mente de uma inconstante protagonista. Refletindo aqui os temas fortes, de ressonância familiar, além das intensas dimensões psicológicas já presentes em seu livro vencedor do Goncourt, “Trois Femmes Puissantes” — Três Mulheres Fortes, ainda sem tradução para o português —, Ndiaye cria uma narrativa envolvente, propositalmente confusa e muito difícil de largar, em que saber onde se está pisando a cada passo é o maior desafio.


Sua mãe então disse, sorrindo para si mesma:

— Entrei naquela casa como numa floresta encantada.

— Do que você está falando? — reclamou o sr. Susane.

Ele ainda não tinha falado nada.

Dra. Susane se lembrou: ele não gostava de mistérios, a estranheza o humilhava pessoalmente.

Reprovava o gosto pelos paradoxos da existência, pelas coincidências curiosas, pelas especulações e pelos devaneios.

Mas era doce e gentil, e dra. Susane, filha única desse homem, não podia se lembrar de uma única vez em que a repreendera ou castigara sem motivo.

Como o amava!

E porque amava tanto esse pai realista forçou-se a sorrir quando a sra. Susane dissera “floresta encantada”, esperando que seu leve sorriso complacente tranquilizasse o pai quanto ao fato de estar do seu lado, ali onde a razão imperava.

Porém, repetia para si mesma, atormentada: era isso mesmo, era a floresta encantada, era o lugar em que a alegria simples e pura nos subjugava como se fosse um feitiço.

— Essa casa de Caudéran — ela perguntou para a sra. Susane —, você conseguiria encontrá-la? Lembra o endereço?

Sua mãe balançou a cabeça, desolada.

— Fui só uma vez, sabe.

Depois, dirigindo-se ao sr. Susane num tom levemente desafiador, contou sobre aquele dia de inverno, há cerca de trinta anos, em que fora passar roupa na casa daquelas pessoas de Caudéran cujo nome não se lembrava, sobre as quais havia esquecido tudo, como era a casa, seus rostos, sua linguagem e sua aparência, mas nunca a educação com que a receberam (pois de fato sentira-se como uma convidada daquele casal quando substituiu por um único dia a faxineira fixa).

Entrei naquela casa como numa floresta encantada

Passou a roupa na cozinha, roupas elegantes e macias muito pouco amassadas, como se quisessem ser corteses com ela, e a cozinha lhe pareceu uma réplica graciosa da sua, não porque fossem parecidas, mas porque o cômodo, dotado também de intenções generosas, a acolhera com calor e civilidade, e lhe dissera: Sinta-se em casa, e a sra. Susane concordou sem achar que havia ali uma segunda intenção sarcástica, ela que, trabalhando na casa dos outros desde a adolescência, tinha o hábito de falar de seus patrões num tom amargo de escárnio.

Era quase uma mania, reconhecia, pois não diferenciava mais os bons dos maus, misturava-os todos no grande caldeirão de sua ironia mordaz.

— Eles não, nunca — a sra. Susane afirmou, olhando fixamente para o marido como se quisesse impedi-lo de contradizê-la.

A mulher de Caudéran havia lhe oferecido um café, e suco de laranja para a pequena que a acompanhava, o homem saiu de seu escritório para cumprimentá-la e lhe dar as boas-vindas.

Sra. Susane, reconhecia, ficaria incomodada se não tivesse percebido de imediato que a afabilidade daquele casal fazia parte de sua essência, que não estavam fingindo estar felizes com sua presença, mas que genuinamente se sentiam assim durante o tempo que precisavam conviver com ela em sua casa, como excelentes cachorros, explicou a sra. Susane seriamente, que ficam felizes em encontrar pessoas, ainda que esqueçam das visitas no minuto em que elas vão embora.

É isso, sim, disse a sra. Susane para terminar, seus patrões efêmeros de Caudéran haviam manifestado de forma simples um prazer em recebê-la na casa deles que jamais encontrara em qualquer outra.

A isso somava-se sua liberalidade: pagaram-lhe por seu trabalho o dobro do que ela costumava cobrar, sem falar nada, sem chamar a atenção para isso, num movimento semelhante em franqueza e, quase, em candura ao que fizera a mulher de Caudéran perguntar, várias vezes no correr da tarde, sempre que entrava na cozinha, se “estava tudo bem mesmo”, com uma voz cálida e doce, alegre e atenciosa.

— Você entende por quê, espero — disse a sra. Susane ao marido com veemência —, entende agora por que me lembro daquela casa como de um lugar extraordinário?

…como excelentes cachorros, que ficam felizes em encontrar pessoas, ainda que esqueçam das visitas no minuto em que elas vão embora

— Sim — resmungou o sr. Susane.

— Como de um país das maravilhas?

Ele balançou a cabeça, ainda descontente.

— Posso muito bem dizer “floresta encantada” então, qual é o problema?

— Isso me incomoda — disse pausadamente o sr. Susane —, porque não gosto dessas palavras, elas enganam.

Dra. Susane se levantou, lavou sua xícara na pia.

Queria ir embora agora, já que não obtivera a resposta para a pergunta que a trouxera ali:

Principaux tinha relação com a floresta encantada de Caudéran?

Além do mais, sentia vibrar entre os pais uma irritação pouco comum, e culpava-se por tê-la provocado.

Mas, antes de avisar que voltaria para Bordeaux, o sr. Susane se aproximou, pousou uma mão terna e leve em seus cabelos, logo acima da orelha.

— Minha pequena — disse sorrindo —, você trabalha demais, já quer ir embora, estou vendo.

Ela protestou sem convicção, dando a entender no entanto que muitos processos realmente a esperavam.

Não tinha quase nada na verdade, dois divórcios amigáveis, uma mudança de nome e o pedido do visto de permanência para a família de Sharon.

Seus pobres pais, como os enganava!

— Não entendi direito — disse então o sr. Susane com uma voz estrangulada —, o que se passou naquele quarto, em Caudéran. O que esse cara fez exatamente?

Não entendi direito, o que se passou naquele quarto, em Caudéran. O que esse cara fez exatamente?

— Mas, papai, eu acabei de contar! — gritou dra. Susane.

Estava tão chocada que seu cotovelo bateu na pia e derrubou a xícara, que se espatifou no chão.

Dra. Susane, satisfeita com essa distração, começou a recolher os cacos.

Continuou então, agachada, com o rosto voltado para o chão:

— Não entendo sua pergunta, papai. Acabei de contar o que aconteceu naquela tarde, não omiti nenhum detalhe quando fazia sentido e interessava no contexto de minha história, quando significava alguma coisa reveladora, disse também, acredito, que essas poucas horas que passei com aquele jovem (eu o via assim do alto de meus dez anos, ele devia ter catorze ou quinze apenas) são as que recordo hoje com prazer, com nostalgia também, pois, é verdade, talvez eu tenha dito a você, nunca mais encontrei em nenhum garoto, em nenhum homem, em ser humano nenhum, na verdade, aquele charme estranho que de algum modo me levou fatalmente a adorá-lo.

— Mas o que ele fez? — perguntou sr. Susane com uma voz sofrida.

— Nada, papai! Você não consegue entender? Absolutamente nada em relação ao que você está querendo dizer!

Produto

  • A Vingança É Minha
  • Marie Ndiaye (trad. Marília Scalzo)
  • Todavia
  • 200 páginas

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