Instruções para viver uma vida — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Instruções para viver uma vida

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre as cenas e os sons do terror, dois poetas numa guerra, Elis e Tom em Kodachrome e um ateu num teco-teco

16 de Outubro de 2023

Instruções para viver uma vida: Presta atenção. Espanta-te. Fala disso

Mary Oliver, 2008

Você deve ter visto a foto do caminhão de sorvete estacionado na faixa de Gaza.

Na lateral, imagens publicitárias de picolés e casquinhas. Na traseira, “crocante” escrito em letras vermelhas. Dentro, corpos de palestinos que não têm pra onde ir nem depois de mortos.

Os necrotérios tão abarrotados.

*

Fotografia de guerra é um gênero ambíguo, capaz de atrair e repelir o olhar simultaneamente.

“Talvez as únicas pessoas com direito a olhar imagens de sofrimento dessa ordem extrema sejam aquelas que poderiam ter feito algo para minorá-lo – digamos, os médicos de hospital militar onde a foto foi tirada”, escreve Susan Sontag em “Diante da Dor dos Outros”.

Ela prossegue: “Os restantes de nós somos voyeurs”.

*

Após 150 anos de fotografia de guerra, entramos na era do reels de guerra.

O conflito entre Israel e Palestina – que deveria ser entre Israel e Hamas – mostra seu horror em vídeos curtos nas redes sociais.

Cenas como a de Shani Louk, jogada seminua na caçamba de uma picape cheia de terroristas, fazem Robert Capa parecer um fotógrafo de batizados.

*

O que você faz quando vê um alerta de “imagens fortes” ou “conteúdo sensível”? Clica ou não? A curiosidade mórbida supera o estresse emocional?

Na tarde desta segunda, as hashtags #palestine e #israel tinham 33,5 bilhões e 30,1 bilhões de vizualizações no TikTok.

Voyeur irmão – hipócrita – meu semelhante!

*

Mas a repetição de choques visuais pode enfraquecer sua potência.

Em meio a tantas imagens, nada me tirou do prumo como as vozes do israelense Golan Atibul e do palestino Abdallah Hasaneen contando o que passaram essa semana – palavras que valem mil imagens.

Os dois tão no podcast “The Daily”, do New York Times.

*

Mostrar e falar da barbárie pra evitar sua repetição.

Ou, tomando emprestados os versos da norte-americana Mary Oliver em seu livro “Pássaro Vermelho”: “Presta atenção. Espanta-te. Fala disso”.

Não direi nada sobre o grito dos órfãos

Yehuda Amichai, 1978

A terra dos homens é de todos os homens?

Mahmud Darwish, 1986

Yehuda Amichai é o maior poeta israelense; Mahmud Darwish, o maior poeta palestino.

Mais que se respeitarem, eles se admiravam mutuamente – apesar das imensas diferenças políticas.

Amichai trocou a Alemanha por Jerusalém em 1935, a tempo de escapar da Shoá que mataria seis milhões de judeus. Lutou na Segunda Guerra Mundial e nas guerras da Palestina, Sinai e Yom Kippur. Em sua primeira campanha militar, um livro de poesia fez o soldado virar escritor.

Ainda criança, Darwish viu seu vilarejo no norte da Galileia ser ocupado por Israel em 1948 – Amichai combatia pelo lado oposto, no front sul. Fugiu com a família pro Líbano, voltou clandestino e foi preso algumas vezes já como “poeta da resistência”, antes de se exilar novamente.

O poema em que Amichai deixa o grito dos órfãos dizer tudo o que é preciso ser dito começa assim:

“O diâmetro da bomba media trinta centímetros e o diâmetro da destruição, cerca de sete metros, nele, quatro mortos e onze feridos./ Ao redor, num círculo mais largo de dor e tempo há dois hospitais e um cemitério.”

Os versos avançam, revelando que o raio do sofrimento é ainda maior:

“Mas a jovem mulher, enterrada no local de onde viera à distância de cem quilômetros, aumentou muito o círculo/ e o homem solitário que chora pela morte da moça no litoral de um país distante inclui o mundo inteiro no círculo.”

(Essa angústia sem fronteiras continua atual: ontem à noite, recebi a mensagem de uma amiga querida, na expectativa de que sua filha consiga embarcar logo num dos voos da FAB pra longe do terrorismo e da guerra.)

Já o poema de Darwish traz um antídoto óbvio contra violência.

“Não me Canso de Falar” começa mencionando “um país cujo carimbo não encontrei em nenhum passaporte”, antes de fazer uma pergunta retórica: “Senhoras e senhores de bom coração, a terra dos homens é de todos os homens?”

Enquanto não for, não vai haver paz.

Eu sempre fui só de você/ você sempre foi só de mim

Aloysio de Oliveira, 1964

Tinha tudo pra dar errado e deu mesmo – mas só por uns dez dias. Aí o encontro de Elis Regina e Tom Jobim deu certo pra sempre.

Ela desembarcou em Los Angeles, onde Tom morava em 1974, crente que ele participaria do disco dela. Ele a recebeu no aeroporto certo do contrário: Elis que cantaria no seu álbum.

Além de muito cacique pra pouco representante dos povos originários, não era mesmo dos duetos mais prováveis.

O mais exuberante dó de peito da música brasileira tava distante da contenção da bossa nova – já definida como um estilo em que os intérpretes parecem estar sempre resfriados.

(Frank Sinatra já dera uma zoadinha, anotando no encarte de seu disco com Tom: “A última vez que cantei tão suavemente foi quando tive laringite”.)

Após desistir de desistir da gravação, desfazendo as malas prontas pra antecipar o voo de volta, Elis envolveu Tom. E vice-versa. Mas a escaramuça artística nunca foi segredo.

Elis mesma entregou: “Ganhei de presente um encontro com Tom. Foram momentos vividos por duas pessoas muito tensas, que só conseguem descontrair através da música”.

Até a capa do disco é desencontrada: na foto, ele tá à esquerda dela. Nosso cérebro, acostumado a ler da esquerda pra direita, pensa logo em Tom e Elis, nessa ordem contrária a do título em cor de laranja: “Elis & Tom”.

Agora podemos ver a dupla em Kodachrome.

Seguindo a fórmula do gênero, o documentário de Roberto de Oliveira costura imagens de época com depoimentos atuais. Acrescenta um subtítulo emprestado da terceira faixa: “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”

Faz sentido.

Afinal, a letra de Aloysio de Oliveira celebra um encontro depois de muitos desencontros: “Se ao menos pudesse saber/ que eu sempre fui só de você/ você sempre foi só de mim”.

Tudo isso lembra que é possível fazer das diferenças uma potência. “Elis & Tom” não é o que é apesar das divergências – mas por causa delas.

Eu quero meu coração de volta/ quero sentir tudo outra vez

Louise Glück, 2006

Geralmente sou ateu, mas abro uma exceção quando embarco num monomotor.

Aconteceu semana passada.

Tinha lido algo sobre uma novidade na ponte aérea: voos entre Congonhas e Jacarepaguá – um aeroporto a 15 minutinhos do meu compromisso carioca. Perfeito. Comprei a passagem sem prestar atenção nos detalhes.

O diabo e os monomotores, porém, moram nos detalhes.

No portão, estranhei o conselho do funcionário de solo. Enquanto conferia meu RG, recomendou quase displicente:

– Se tiver com vontade de ir ao banheiro, a gente sugere ir logo aqui no aeroporto.

Sujeito precavido, pensei, pode mesmo acontecer um chamado fisiológico no translado até a aeronave. Não parecia ser o caso e segui pro ônibus.

O ônibus, surpresa, era uma van.

O passageiro ao meu lado não se conteve quando, após ignorar um punhado de Boeings e Airbus, estacionamos diante de um teco-teco.

– É esse o avião??!!

Era.

O piloto, que também fazia as vezes de comissário, dava boas-vindas ao lado da escadinha de três degraus. Sensível, dissipou os temores de meu já pálido companheiro de infortúnio, relutante em confiar sua vida a um único motorzinho.

– Sabe pra que serve o segundo motor? Pra levar o avião até o local do acidente.

Diante do argumento definitivo, embarcamos – com cuidado pra não bater a cabeça na porta diminuta.

Agachado por conta do teto de apenas 1,37 metro de altura, foi fácil pegar um copinho de água na geladeira de isopor no chão da aeronave. Caiu a ficha: não tinha banheiro no avião – e o voo duraria 1h30. Devolvi a água e sentei num dos nove lugares da Kombi voadora.

Após a decolagem deveras barulhenta e agitada, a baixa altitude de cruzeiro revelou um incrível voo panorâmico – o mais bonito em quase 30 anos sacolejando entre São Paulo e Rio.

Respirei fundo e troquei o “Pai-Nosso” pela “Rotunda Azul”, de Louise Glück: “Eu quero meu coração de volta/ quero sentir tudo outra vez”.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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