Há alguns anos, meu pai digitalizou algumas fitas VHS da nossa infância para DVDs. Essas imagens sempre nos rendem boas risadas em família, identificamos como nossa personalidade de bebê já se mostrava forte em determinados momentos; como a educação dos anos 80 era politicamente incorreta em muitos âmbitos e como a beleza dos meus pais era deslumbrante.
Desde o nascimento da minha filha, uma dessas imagens vêm à minha mente de tempos em tempos: minha mãe está cercada de suas amigas, todas brancas, conversando sobre como minhas irmãs e eu éramos as únicas negras na sala da escola, e embora o barulho do samba no quintal esteja presente na filmagem, o que me chama atenção é o silêncio daquelas pessoas.
Como filha de pais militantes, o letramento racial sempre esteve presente desde que me conheço por gente. Cresci em um círculo social de classe média e a dura realidade de ser a avis rara no ambiente escolar privado foi uma constante, mas não se limitou apenas àquele momento, essa experiência também se estendeu à maioria dos meus momentos de lazer, na universidade pública e na minha vida profissional, até recentemente.
No entanto, essa imagem continua ressurgindo na mente, não apenas pelo discurso da minha mãe, que gostaria que fosse algo anacrônico, mas que infelizmente ainda é tão atual. Ando um pouco obcecada com a lembrança do silêncio das amigas brancas dela, e seus olhares contemplativos diante das palavras daquela mulher negra, os olhares reconhecendo a seriedade e importância do que ela estava dizendo, mas a boca optando por permanecer em silêncio, como se o problema não tivesse muito a ver com elas.
Diante dessa postura, não me furto de pensar na célebre e batida frase de Martin Luther King: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… o que me preocupa é o silêncio dos bons”.
A plenitude do silêncio em face de injustiças sociais é um traço da branquitude
Essas amigas dos meus pais, tão queridas e significativas para a minha história, para meu repertório, tinham ali a oportunidade de aprofundar a questão, de debater e incorporar atitudes inclusive em suas próprias casas e com seus próprios filhos. No entanto, há 30 anos, elas optaram por permanecerem atônitas enquanto minha mãe expunha um problema da sociedade, elas até propiciaram, sem interdito, um espaço seguro em que minha mãe se sentia à vontade para relatar sua preocupação, mas o comportamento que demonstravam transmitia a ideia de que se tratava apenas de um problema daquela mulher e de sua família, não um problema da sociedade como um todo.
A plenitude do silêncio em face de injustiças sociais é um traço da branquitude. Seja o silêncio perante a humilhação racista reiterada de um jogador de futebol em campo, seja o silêncio das pessoas brancas diante de um humorista branco que faz piadas racistas, justificando-as com base em uma suposta liberdade de expressão, seja o silêncio das pessoas brancas quando um colunista também branco profere absurdos em seu espaço garantido em veículo de comunicação de grande massa, ou o silêncio das amigas brancas quando uma mãe expressa preocupações em relação às suas filhas negras.
A minha preocupação com a experiência vivida pela minha mãe foi reavivada quando minha filha nasceu. Agora, após 30 anos, me encontro frequentemente na mesma situação, discutindo com pessoas brancas queridas sobre a importância de evitar a super-representação de pessoas brancas na formação da consciência da minha filha. A partir desse ponto, muitas vezes a conversa flui, pedem recomendações de livros, refletem sobre a falta de diversidade étnica nas escolas particulares e mencionam algumas ações que consideram ser antirracistas. Além disso, compartilham comigo guias que circulam pelo WhatsApp e aí a conversa acaba. Lamento dizer que isso ainda não é o suficiente.
É preciso ajudar as crianças e os adolescentes a refletirem sobre o significado de ser branco na sociedade em que vivemos
A atriz e roteirista Nathalia Cruz fez um story excelente, relatando um dia de praia, um momento de lazer, no qual ela pretendia apenas tomar sol, mas acabou inevitavelmente envolvida em uma longa discussão com seu companheiro sobre as questões dolorosas e os caminhos para combater o racismo. Para além do humor, o que ela está transmitindo é que ser antirracista é uma forma de existir no mundo, uma ação contínua em todos os momentos. E para os cuidadores brancos que se autodenominam antirracistas, é crucial incorporar essa filosofia de vida, essa maneira de ser e de estar no mundo. Não é suficiente apenas matricular crianças brancas em escolas que seguem a lei federal 10.639/03 e ensinam a história e a cultura afro-brasileira e africana. É preciso levar o debate para dentro de casa, inclusive ajudando as crianças e os adolescentes a refletirem sobre o significado de ser branco na sociedade em que vivemos.
A socióloga Margaret Hagerman, em seu livro “White Kids: Growing Up With Privilege In a Racially Divided America” (Crianças Brancas: Crescendo com Privilégios em uma América Racialmente Dividida), esboça como crianças brancas ainda que identifiquem as iniquidades raciais presentes em seu cotidiano, desde muito cedo elas se enxergam como universal, a questão da raça é vista como um problema dos negros, isto é, não há esforços para que as crianças brancas se vejam como grupo racializado e, portanto, detentor de poder simbólico e material.
Ainda que seu trabalho de campo tenha sido executado nos Estados Unidos, notamos facilmente similaridades no comportamento de pais brancos brasileiros. Em seu estudo, descobriu Hagerman, que muitos pais brancos preferiam não falar sobre raça com seus filhos, a partir de uma crença de que já superamos a questão racial, e que somos todos iguais. Por vezes, crianças dessas famílias estavam tão preocupadas em serem rotuladas como racistas que relutavam em identificar pessoas como negras ou brancas. No entanto, obviamente, as crianças conseguiam ver as diferenças raciais – e quando pressionadas, às vezes diziam coisas que eram racistas.
Isso ocorre porque, como bem destacou bell hooks, a “integração racial traduzida em assimilação serve, sobretudo, para reforçar e perpetuar a supremacia branca”. É importante ressaltar que, para combater a supremacia branca, as pessoas brancas precisam adotar diversas ações, incluindo romper com o silêncio.
Dizem que sinestesia é uma experiência perceptiva única, na qual os sentidos se entrelaçam e se fundem, proporcionando uma mistura única de sensações e percepções. Enquanto concluo este texto, uma música do Bob Dylan começa a tocar e desperta uma reação sinestésica em mim. A melodia envolvente e a letra, simples e profunda a um só tempo, transportam-me para um estado em que posso saborear o amargo do verso.
“E quantas vezes um homem pode virar a cabeça/ E fingir que simplesmente não vê?/ E quantas orelhas um homem precisará ter / Até que ele possa ouvir as pessoas chorarem?”
É fato, Dylan, a resposta não está sendo levada pelo vento; a resposta reside na ação.
Manuela Thamani é bacharel em administração de empresas (USP) e mestra em comunicação (USP). Trabalhou em multinacionais, veículos e fundação. É co-diretora executiva do Observatório da Branquitude.
Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.
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