Fernando Luna
Adoro meu emprego, detesto meu trabalho
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre os trabalhos e dos dias, a batalha entre Oxxo e Osho, os verdadeiros termos de uso do Twitter e a descoberta antropológica mais importante do país desde o crânio de Luzia
Chego sempre à hora certa/ contam comigo, não falho/ pois adoro meu emprego/ o que detesto é o trabalho
Millôr Fernandes, 1949
Nossa relação com o trabalho é tão ambígua que demos um jeito de inventar um feriado que o celebra e o evita, simultaneamente.
Se a coisa fosse boa de verdade, todo mundo aproveitaria a data pra trabalhar em vez de descansar: viva!, oito ou dez horas extras pra fazer mais planilhas, mais relatórios e mais reuniões que podiam ser uma figurinha de Zap.
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O mundo do trabalho em três eufemismos:
Meritocracia – fingir que a menina negra da escola pública tem a mesmas oportunidades que o garoto branco da escola americana.
Otimização – crianças nas minas de carvão do século XIX engatinhavam por buracos mais estreitos. A escavação foi otimizada, comemorou o consultor.
Chief Creative Disruption and Insights Officer – remuneração e carga horária costumam ser inversamente proporcionais à exuberância do cargo.
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Hora do almoço. Restaurantes por quilo invadidos por devotos funcionários exibindo o crachá da firma pendurado no peito, como se fosse uma medalha.
Tragédia anunciada. Raramente esse entusiasmo é correspondido. Resultado: separações traumáticas quando chega a hora do corte de custos – e o medalhista recebe o bilhete azul.
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Só existe uma coisa pior que trabalho: desemprego.
Treze milhões de brasileiros, entre desocupados e desalentados, sabem bem. Fora 38 milhões de informais, suspensos na corda-bamba sem rede de proteção social.
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Quando Millôr Fernandes, o guru do Meyer, publicou sua quadrinha nas páginas da revista “O Cruzeiro”, a Consolidação das Leis do Trabalho era novidade.
Oito décadas depois, a CLT vai sendo dissolvida por lobbies descarados e pela transformação escancarada do trabalho em si.
Se a revolução industrial substituiu mão-de-obra por máquina, a revolução digital vai colocando pra escanteio também colarinhos brancos e ocupações criativas – o sindicado dos roteiristas de Hollywood já prepara sua defesa.
Quem é você na pessoa física, eis a questão mais atual que nunca.
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Graças a Deus é segunda-feira – e é feriado, ainda.
Vou confundir seu nome e você vai achar que foi acidental
Diane di Prima, 1961
Tá em curso a mais acirrada batalha fonética desde que o Jornal Nacional passou a dizer “Roráima” em vez de “Rorãima”.
O teatro de operações linguísticas são as esquinas paulistanas, onde a onipresente rede de lojas de conveniência Oxxo repete sua propaganda de guerra a cada fachada: “Se fala ‘ó-quis-sô’”.
(Curioso: tão liberal na colocação do pronome, puxando o “se” pra antes do verbo, tão conservadora na prosódia, tentando regulamentar a sílaba tônica.)
Como todo conflito, esse também não surgiu do nada.
Primeiro, a franquia tomou o lugar das mercearias de bairro, mas não me importei com isso. Saiu a senhora que pesava tomate enquanto estudava com a filha, entrou um garoto uniformizado vendendo cigarro durante uma partida de Battle Royale no celular.
Depois, jurou funcionar 24 horas, mesmo que as portas fechadas desmentissem a afirmação em tempo real. Mas não me importei com isso: era uma chance a menos de comprar algo ultraprocessado, rico em gordura saturada e com alto teor de açúcar às 3 da madrugada.
Agora, querem botar palavras na minha boca.
É preciso agir, antes que seja tarde. Não só porque prefiro imaginar que o Osho – se fala “Oxxo” – tem centenas de centros de meditação pela cidade, como pra evitar que o combate se espalhe.
Periga a Nike se sentir no direito de exigir: “Se fala ‘Ni-quê’, como no original grego”. O vendedor da Levi’s ignorar clientes incapazes de pedir uma calça “Li-váis”. O dono de botequim explusar o beberrão que enrolar a língua dizendo “Bram-rrá” em sânscrito.
Sigo firme na trincheira da autodeterminação dos povos e de seus sotaques – ainda mais quando a palavra em disputa não existe em nenhum idioma, é apenas uma invenção de marketing.
Por isso, quando me pedirem uma informação na rua, verás que um filho teu não foge à luta: “Fica logo ali, passando o quinto Osho, à esquerda”.
Se alguém me corrigir, rebato com versos dos “Poemas Mais ou Menos de Amor”, da norte-americana Diane di Prima: “Vou confundir seu nome/ e você vai achar/ que foi/ acidental”. Não é acidente, é resistência.
Eles passarão… Eu passarinho!
Mario Quintana, 1973
Chega de hipocrisia: um passarinho azul me contou que o Twitter vai finalmente ajustar seus Termos de Uso.
- Visão geral: Vale-tudo.
- O que viola essa política? Pouca coisa, já que “o Twitter é um lugar onde as pessoas podem se expressar”.
- Denunciar violações: Se as pessoas gostam de se expressar celebrando um assassino de crianças em creche ou compartilhando fotos da autópsia da cantora mais popular do país, nossos moderadores de conteúdo tão aí pra avaliar cada tuíte.
- Notícias da empresa: Bem, boa parte deles rodou nas 6 mil demissões desde a chegada do fogueteiro Elon Musk. Todavia, após ouvir algo sobre multas de 12 milhões de reais, nosso diretor financeiro encomendou um letramento sobre liberdade de expressão versus discurso de ódio.
- Normas de monetização de conteúdo: Até 2016, o feed simplesmente mostrava o que seus amigos postaram, em ordem cronológica. Era ótimo pra sociedade e péssimo pros negócios.
Felizmente conseguimos reverter essa situação, graças a um ajuste no algoritmo – que passou a recomendar o pior da humanidade pro maior número possível de usuários.
Assim, a vida na Terra fica cada vez mais insuportável e a perspectiva de uma mudança pra Marte, com seus aprazíveis 120 graus Celsius negativos, parece cada vez mais atraente.
O nome disso é sinergia empresarial: aguarde o bombardeio de anúncios da SpaceX na sua timeline.
- Sobre mensagens diretas: Carluxo, esse recurso evita passar recibo publicamente – #NemUmRatoMereceria.
- Rescisão: Se você violar nossas regrinhas, violar muito mesmo, quem sabe pode ser que talvez eventualmente seja banido do Twitter. Provavelmente não.
Quem sabe, uma suspensão por tempo indeterminado – mas não adianta estimular a depredação da Praça dos Três Poderes, precisa pelo menos botar um maluco com chapéu de chifre dentro do Capitólio.
- O que o selo azul de verificação significa: Você é cabeça fraca e topa pagar 629 reais por ano pro Twitter reconhecer que é mesmo você no Twitter, embora ninguém mais se importe com isso.
- Fale conosco: ?.
Fundamental é mesmo o amor/ é impossível ser feliz sozinho
Tom Jobim, 1968
Semana passada fui ouvir João Gilberto cantar e tocar aqui em São Paulo.
Não acredito em vida após a morte nem em espírito a não ser de porco, mas boto fé no bruxo de Juazeiro.
E ele apareceu, folclore à parte, como quase sempre aparecia quando tava por aqui. Eu mesmo tive em seis apresentações dele, que fez a fineza de comparecer a todas.
(Já dividi a mesa com uma senhora que conhecia só o refrão de uma única canção do repertório do baiano. Quando chegou a hora, ela não perdeu a chance – se você disser que eu desafino, amor, saiba que nada se compara àquilo. A onomatopéia mais famosa do cancioneiro foi destroçada ao pé do meu ouvido: “Qüénnn, qüénn, qüem, qüéeem, qüemm”. Fiquei anos sem escutar “O Pato”.)
Dessa vez, porém, vieram apenas voz e violão – como se fosse justo escrever “apenas”, quando voz e violão são tudo.
Era o lançamento do álbum “Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc)”, no mesmo teatro da Vila Mariana onde aconteceu em 5 de abril de 1998 o show agora remasterizado – além do som límpido, tem as inéditas em disco “Violão Amigo” e “Rei sem Coroa”.
Essa última foi uma das faixas pinçadas pra tocar nas caixas de som e apresentar a descoberta, criando um jogo de espelhos sonoro.
A plateia de hoje se juntou à plateia de 25 anos atrás nos aplausos, sobrepondo as palmas ao vivo às gravadas: João Gilberto deu um jeito de subverter o tempo mais uma vez – agora sem precisar sequer adiantar ou atrasar seu canto, marca registrada de sua reinvenção do samba.
Depois, deram play em “Eu Sei que Vou te Amar”. A turma de 2023 fez coro com João e as 645 pessoas presentes no show original.
Sei lá por quê, mas escutar uma música ao lado de outras pessoas é mais impressionante que sozinho no fone de ouvido – deve ter a ver com o fato de que “é impossível ser feliz sozinho”, como ensina Tom Jobim em “Wave”, uma das 36 faixas reunidas agora.
Vai ouvir tudo na plataforma digital do Sesc e diz se não é o achado arqueológico mais importante do país desde o crânio de Luzia.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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