Um museu de grandes novidades
Exposição “Um Século de Agora”, no Itaú Cultural, reflete sobre a produção artística brasileira, cem anos após a Semana de 22, pelo olhar de artistas de hoje
Qual é o retrato do país traçado pela produção artística brasileira de hoje? Que legado ela guarda da Semana de Arte Moderna de 1922, seja pela sua afirmação, reelaboração ou negação? Estas são algumas questões suscitadas pela exposição “Um Século de Agora”, que ocupa o Itaú Cultural a partir desta quinta (17) e busca refletir sobre os últimos cem anos de nossa produção em arte e cultura por meio de um olhar contemporâneo.
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São mais de 70 obras, entre pinturas, fotografias, instalações e vídeos assinados por 25 artistas e coletivos de 11 estados brasileiros em diferentes realidades e perspectivas históricas. Em comum, eles têm a arte como meio de codificar e narrar a realidade que os originaram, cercam e movem, compondo um interessante mosaico dos vários brasis que formam a identidade cultural do país, sobre valores que nos unem e nos afastam.
As obras e projetos apresentados foram realizados ou concluídos, em sua maioria, em 2022 – ou seja, agora – traçando, assim, um rico panorama artístico a quente de um ano marcado não só pelas revisões de suas muitas efemérides, mas também pelas muitas crises, solavancos e transformações que nos trouxeram até aqui.
Este é um ano de muitas efemérides e muito adensado por uma série de questões importantes históricas, políticas e culturais
“Não há nenhuma tese ou projeto de Brasil, de cultura brasileira sendo necessariamente defendido na mostra. O que liga todas essas produções e repertórios tão diferentes é o fato de 2022 ser um ano não só de muitas efemérides, mas muito adensado por uma série de questões importantes, sejam históricas, políticas ou culturais”, diz Júlia Rebouças, que divide a curadoria com Luciara Ribeiro e Naine Terena de Jesus.
“Nós perguntamos a todos os artistas que estão participando: o que você está fazendo agora? O que que está te inquietando, movendo, o que te atravessa? Parte dessas respostas estão na exposição.”
Mais crítica que celebração
A partir das reflexões sobre os outros 22 – além da Semana de Arte, o Bicentenário da Independência e outras efemérides lembradas ao longo deste ano –, Luciara Ribeiro afirma que “essas datas não nos interessam como celebração, mas como forma de crítica e disputa histórico-narrativa”.
“Não é nosso interesse com a exposição fazer um estudo sobre a Semana de Arte Moderna. Por outro lado, é uma reflexão que a gente faz nesse agora que também significa pensar caminhos para uma escrita tanto de arte quanto de sociedade. É pensar outros referenciais que não sejam se firmar em um evento ou em uma narrativa de autoria única. A gente não quer repetir essa forma de ver o passado e a exposição deixa isso muito evidente”, ressalta.
Ela cita, como exemplo dessa ampliação de vozes, do Grupo Ururay, formado por pesquisadores atuantes na preservação e na divulgação do patrimônio cultural da Zona Leste de São Paulo, que questiona as noções de memória e patrimônio dentro das políticas públicas da metrópole. Para “Um Século de Agora”, o coletivo traz uma instalação que revela a história de duas das igrejas mais antigas da cidade: a Capela de São Miguel Paulista e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Negros, no bairro de Penha de França, que, a despeito do valor histórico, não estão nos projetos e mapas turísticos.
O mapa do Brasil inteiro
Outra preocupação foi trazer para a exposição artistas representativos das diferentes regiões do país – uma das limitações hoje apontadas da Semana de 22, centrada numa elite predominantemente paulistana –, como afirma a também curadora e pesquisadora Naine Terena de Jesus.
“Eu venho do Mato Grosso e uma das coisas que me movimentou foi buscar outras participações que não estivessem tão próximas do Rio e de São Paulo, que é onde realmente essa produção circula. Tive um olhar bastante cuidadoso para ir a esses lugares, não só circular pelo Norte e Nordeste. E aí a importância dos vários interlocutores que tivemos para chegar a outras realidades que não acessaríamos”, diz.
Em 1922, havia um desejo muito claro de criar monumentos. Cem anos depois, discutimos a necessidade de incinerar essas ideias
Entre os muitos artistas que traduzem as diferentes realidades de um mesmo país está a cuiabana Dalva de Barros, artista de 87 anos e mais de 60 de carreira. “Fila de Ossinhos”, uma de suas pinturas que está na mostra, retrata moradores em fila para comprar ossos de uma açougue em Mato Grosso, numa das muitas tragédias noticiadas sobre o Brasil neste ano.
Inevitável no momento atual, boa parte dos trabalhos é atravessada pelo contexto político. “Algumas obras são mais frontalmente e factualmente políticas, mas todas de alguma maneira vão reelaborar criticamente o nosso tempo, e isso é política”, descreve Júlia. Ela cita, entre muitas, a obra do Coletivo Revolução Periférica, um registro do protesto que ateou fogo à estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, em julho de 2021.
“Em 1922, havia um desejo muito claro de criar um monumento, de fincar uma bandeira naquele tempo-espaço. Agora, cem anos depois, discutimos esses monumentos, a necessidade de incinerar essas ideias. Tem uma provocação com esses totens que a gente veio arrastando há um século e que agora não é preciso negá-los, mas confrontá-los um pouco.”
Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.