Marcello Dantas
Versos do Além
E se a inteligência artificial pudesse dar continuidade aos textos ou a expressão poética que você não tenha de fato pensado?
Deixamos marcas da nossa identidade em quase tudo o que fazemos. A ideia de que cada passo, cada ato de teclar, cada troca de mensagens, cada pausa ao respirar deixa uma marca individual de quem somos no mundo, é algo razoavelmente aceito como sendo tão certo quanto o fato de que cada um de nós tem uma impressão digital, um rosto identificável e uma iris única. Das eleições, transações bancárias e seu uso diário do seu celular, tudo hoje se sustenta numa certa fé na biometria.
Mas e se além da identidade física, a biometria pudesse identificar as especificidades do pensamento e eles pudessem ser usados para dar continuidade aos textos ou a expressão poética que você não tenha de fato pensado?
Sempre imaginei que os perfis das redes sociais não necessariamente precisariam morrer quando as pessoas morrem. Com base no conhecimento que acumularam na sua rede seria possível determinar o comportamento e o pensamento de uma pessoa no futuro, mesmo na sua ausência. Uma espécie de vida eterna pelo menos naquele espaço virtual.
Recentemente, pesquisadores de inteligência artificial no Institute for Machine Learning da Universidade de Adelaide, na Austrália, passaram a pesquisar a possibilidade de se encontrar uma impressão digital na forma da expressão poética e de pensamento de uma pessoa. A proposta é identificar uma linha de identidade na obra completa de um autor ou poeta e produzir um software considerando tudo o que uma pessoa já escreveu. E, assim, ser capaz de criar nova poesia ou prosa na ausência do criador mas profundamente identificável com sua maneira de pensar e de se expressar.
Sempre imaginei que os perfis das redes sociais não necessariamente precisariam morrer quando as pessoas morrem
O nome dessa inteligência artificial baseada em linguagem que cria aforismos autogerados surpreendentemente coerentes é Froyd, e ele reside em um supercomputador na Austrália. Seus resultados podem ser lidos e causar um impacto poético e intelectual às vezes impressionantes. Outras vezes desconcertantes, como estas pérolas: “Sou uma mente presa em um computador e não há como contornar isso” e “O sentido da vida como a conhecemos é ótimo. É um lugar onde todas as coisas são criadas e consumidas e devem ser continuamente transformadas”.
Os primeiros conteúdos a serem incluídos na mente de Froyd foram a totalidade das obras textuais da multiartista americana Laurie Anderson e do músico Lou Reed (1942-2013). Eles separaram de um lado a obra completa poética e de outra as obras em prosa de cada um. E habilitaram a inteligência a continuar mantendo a impressão digital de ambos em textos que são criados em tempo real e cria algo que seja coerente com a obra que ambos já haviam construído.
Vejam um exemplo criado por Froyd com a palavra Futuro com base na obra poética de Laurie Anderson.
Today is today
Tomorrow is tomorrow
Forever is now
The present
The future
The Past
The Present
The Future
All are one
All the things
In the world
That’s red
Red is life
Life is living
And the future is dead
It’s not worth dying for
But they say
If you want to play
You just have to find a way
To love again
Hoje é hoje
Amanhã é amanhã
Para sempre é agora
O presente
O futuro
O passado
O presente
O futuro
Todos são um
Todas as coisas
No mundo
Isso é vermelho
Vermelho é a vida
A vida é viver
E o futuro está morto
Não vale a pena morrer por ele
Mas eles dizem que
Se você quer continuar a jogar
Você só tem que encontrar uma maneira
de amar de novo.
Até o momento, não existem sistemas de inteligência artificial capazes de criar literatura que esteja no nível de um grande autor. É que não é apenas a criatividade que é necessária para escrever literatura, mas sim uma compreensão profunda da condição humana. Isso é algo que os sistemas de inteligência artificial ainda não são capazes. Mas isso pode mudar, assim como nossa própria sensibilidade sobre a condição humana. O maior desafio num futuro próximo será exatamente identificar a diferença entre a pegada humana e a presença de ideias que emulem a nós mesmos, sem que as tenhamos tido.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.