‘A Pior Pessoa do Mundo’ e a condição millennial
Um ponto de vista contundente sobre alguns dos mais soluçantes dilemas dessa geração
O filme “A Pior Pessoa do Mundo” (2021), do cineasta norueguês Joachim Trier, tem chamado atenção por uma diversidade de questões que aborda. Não são poucas as pessoas que se declaram identificadas com os problemas manifestados nas trajetórias dos personagens com seus ritmos reflexivos tão delicadamente elaborados.
O filme é um ponto de vista contundente sobre alguns dos mais soluçantes dilemas que formariam a condição da assim chamada geração millennial. Lança-se ao centro do debate o tema das incertezas e dúvidas que pairam nas vidas de jovens adultos diante de um universo aparentemente repleto de opções e possibilidades, onde o receituário clássico ancorado no casamento e do emprego fixo, por exemplo, já não é visto como padrão do bem viver.
Em certo capítulo, uma sentença soa como o principal nó que tensiona o argumento do filme, na fronteira entre duas gerações. Aksel, com um pouco mais de 40 anos de idade, diz para Julie, que recém completou os 30: “Eu cresci num tempo em que a cultura era transmitida por meio dos objetos. Eles eram interessantes porque nós podíamos viver entre eles”. De um lado, uma defesa penitente pela estabilidade, de outro a representação do etéreo, do indefinido e da dúvida. Não tem certo ou errado. E esse é o barato do filme que, importante lembrar, é ele mesmo um produto dessas tensões geracionais.
Objetos não somente fixam e tornam visíveis aspectos imateriais, mas também agem em nossas subjetividades e nos sentidos que damos à vida
Aksel tem razão quando coloca os objetos como sujeitos de sua oração. Objetos expressam, dão vida, forma e usos a desejos, significados, ideias e crenças. Nós pensamos, construímos relações, festejamos, trabalhamos, choramos e criamos com eles. Objetos nos unem e nos separam dos lugares e das pessoas. Podemos pensar, por exemplo, nos souvenirs de viagens que transmitem, no tempo, espaços e experiências, nos objetos sagrados que dão corpos à fé.
Lembramos dos artigos do consumo e do desejo, das coleções de livros, gibis, vinis e das peças dos acervos em museus. E os álbuns de fotografias? Eles organizam as nossas histórias, emprestando alguma presença mágica às ausências. Os diários nos ajudam a arquivar a nós mesmos contra as angústias do esquecimento. Todos esses objetos não somente fixam e tornam visíveis aspectos imateriais, mas também agem em nossas subjetividades e nos sentidos que damos à vida.
Mas, sem incorrer em spoiler, é importante notar que Aksel está vivendo um drama de separações, de vida e de morte. A nostalgia, cultivada no terreno da memória, é uma construção seletiva e idealizada sobre o passado contra a ameaça do desaparecimento. O pensamento nostálgico diz muito mais sobre o presente do que sobre a passado propriamente dito. É também onde o problema dos objetos torna-se sintoma da disputa geracional que se instaura entre os personagens do filme. A qualidade material e palpável associada ao passado é colocada, por Aksel, num simplificado e situacional contraste com a instabilidade e a indefinição características do presente e encarnadas em Julie.
A nostalgia, cultivada no terreno da memória, é uma construção seletiva e idealizada sobre o passado contra a ameaça do desparecimento
De todo modo, tanto Julie quanto Aksel vocalizam que as nossas relações com os objetos, com o tempo e com nós mesmos estão em plena transformação. Com o surgimento e a expansão da internet e dos smartphones observamos as sensações, cada vez mais mediadas pelo virtual, escapulirem das nossas mãos, correndo em maior velocidade diante dos nossos olhos. Isso se reflete em nossos hábitos cotidianos, em nossas formas de se relacionar com outras pessoas e, claro, nas perguntas que escolhemos fazer ao contemplar os mistérios do mundo.
Mas, ao contrário do pessimismo de Aksel, a cultura material não está em desaparecimento. Ela está, antes, sendo reconfigurada, ganhando novos personagens, mediações e usos, estimulando outros sentidos com os quais somos desafiados a lidar todos os dias. Nós estamos conduzindo e arquivando as nossas vidas de maneiras diferentes e isso não quer dizer que estamos deixando de fazê-los. A frase de Aksel pairando suspensa nas emoções de Julie (e nas nossas também) pode ser o cerne daquilo que o filme, finalmente, simboliza: um elogio às perguntas e não às respostas.
Paulo Augusto Franco de Alcântara é antropólogo. Atualmente é vinculado ao Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo como pesquisador de pós-doutorado.