Outro dia uma pessoa com quem eu não falava desde 2004 me mandou uma mensagem por Instagram. Não tínhamos muita intimidade na época, agora na mensagem então, foi tudo bem esquisito. Disse a pessoa que lembrava de uma frase que eu falei lá no início do século 21. A frase é péssima, não lembro de ter falado. Pensei “Então, essa pessoa passou 17 anos pensando em mim como um ser humano que falaria tal frase?” Comentei que era difícil eu ter dito tal frase (vocês estão com curiosidade, perdão, mas era como se eu tivesse falado que uma cidade X é podre. Sendo que nunca tinha ido à tal cidade. Daí comentei: “Que estranho você lembrar que falei isso, sendo que nem conhecia, blabla”). Não cheguei a ficar mal porque tal pessoa não está em nenhuma posição da minha hierarquia emotiva, ela nem existe, só deu as caras para esfregar na minha cara que eu talvez seja mais sequelada do que acho. Será?
Tenho uma boa memória para muita coisa. Números. Sou zero das exatas, mas ainda assim, senhas, CPFs, valor que foi transferido, conta de Fulana, agência de Sicrano, telefones (sim, ainda decoro isso), CEPs: não sei porquê, mas consigo lembrar. Todas as brincadeiras idiotas da infância, sei todas. E ainda as utilizo. Lembro dos brinquedinhos minúsculos que tinha e amava, lembro das frases das primas, uns desenhos animados. Sou péssima fisionomista, até porque conheço muita gente, essa parte piorou mais ainda com o tempo. Nomes também não sou tão boa. Lembro mapa astral das pessoas e detalhes miúdos de histórias: “Ah, não lembro seu nome, nem que você fez meu cabelo no show tal, mas se foi esse show, lembro que você me contou que quebrou o pé com sete anos, e sua mãe quebrou um dia depois de você, e vocês duas são taurinas”. Umas coisas assim.
Reservo tanto espaço do cérebro para uns detalhes que às vezes perco o foco
Reservo tanto espaço do cérebro para uns detalhes que às vezes perco o foco, para desespero do meu companheiro, que já me apelidou de Dory, a peixinha do filme “Procurando Nemo” (2003), que tem uma memória de segundos. Convivo com alguém que lembra a frase que eu disse depois da situação tal em 2014. Thiago sabe toda a história e geografia do mundo e lembra dos filmes e livros, e lembra muito, não só sinopses. Quando ele entra nessas de lembrar tudo e mandar um “Porque você naquela noite em 14, disse isso isso isso”, minha mente vai pr’um buraco tão nebuloso, tudo fica turvo e eu só lembro que em 14 eu morei no Humaitá e aprendi a andar de bicicleta sem colocar a mão no guidom.
A memória é a capacidade de armazenar informações, e podemos recuperar essas lembranças, quando queremos acessar. Às vezes também não queremos e o próprio cérebro esfrega na nossa cabeça. Um horror. Vem um constrangimento que a gente viveu há anos, a voz de uma pessoa te criticando, uma lembrança ruim de colégio, barra pesada. Mas confesso que também sou surpreendida com boas lembranças engraçadas de maneira espontânea. Às vezes estou atravessando a rua e lembro o dia que um amigo disse uma besteira tão engraçada e “Como é que eu pude esquecer? Devia ter anotado, quáquá, mas que engraçado lembrar aqui agora atravessando essa rua. Prestenção, Letícia, o sinal vai abrir!” Yin-yang o tempo inteiro. Vem a sombra, mas também vem luz. Felizmente.
Queria ter mais memória. O excesso de informações, de abas abertas, mídias, números, dedinho nervoso passando 13 mil fotos me impedem
Queria ter mais memória. O excesso de informações que recebo, o excesso de abas abertas, mídias, números, dedinho nervoso passando e vendo 13 mil fotos, tudo isso me impede, eu sei. Poderia colaborar mais com a minha memória, sem dúvida. Mas já sou fruto do sistema, e viciadinha que sou, tenho percebido que minha atenção tem se deteriorado. Não posso sair do Instagram e abrir um livro de cara. Porque o olhar já está contaminado. Tenho que deitar, comer, tomar banho. Coisas mundanas que parecem tolas mas que me reconectam com algo anterior. Algo maior. Importante.
Amo dormir. Pessoas falam que preferem viver a vida, porque já já vão morrer, mas é cientificamente comprovado que só aprendemos coisas, memorizamos histórias, decoramos causos, justamente porque dormimos. Chega uma hora da noite, que non sense por non sense, prefiro meu inconsciente. Taí uma coisa que lembro bem: meus sonhos. Mas claro que a prática da anotação ajuda um bocado. As pessoas à minha volta sempre fizeram graça desse meu lado. Me chamavam de velhinha ou de careta, só porque às vezes queria dormir. Mas acho que meu corpo é mais sábio que minha cabeça (na maioria das vezes) e eu até poderia estar num encontro super astral, mas pedir mais uma dose e ver o sol nascer era algo que me fazia pensar “Talvez isso já entre numa nebulosa que eu me esqueça, ao passo que se parar aqui e dormir agora, vou lembrar disso para o resto da vida”. Já me equivoquei, toda regra tem sua exceção, mas na maioria das vezes costumo funcionar assim.
Outro dia um homem comentou com uma amiga em comum uma história completamente deturpada de uma situação que tivemos em 2001. Zero romance. Mas porque envolve um evento muito importante para mim (a primeira vez que fumei maconha), e eu sempre fui dada aos diários (a constância da prática dos relatos colabora muito para a memória), eu lembro com muita precisão de tudo. E o homem disse coisas impossíveis de terem ocorrido. Fiquei mal, parecia que alguém estava roubando minha memória. Furtando minha história. Ao mesmo tempo lembrei que eu devo fazer isso com outras pessoas, então quando já estava pronta para uma possível briguinha, recuperei a sanidade e fui dormir. Primeiro para esquecer, depois para lembrar.
Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”
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