John Kennedy preto — Gama Revista
Reprodução Instagram @jkennedy

John Kennedy preto

Falar em homens e tratar do “moleque primordial” do futebol pátrio, celebrar o surgimento de um John Kennedy preto e jogador brasileiro, mas também associar “a maturidade viril” ao machismo nacional

Marilene Felinto 11 de Maio de 2023

Por falar em homens, nada como tratar da minha descoberta de John Kennedy, jovem preto e jogador de futebol brasileiro do Fluminense do Rio de Janeiro. Nada como a associação fatal entre homens e futebol, por mais que hoje mulheres também representem esse esporte.

O título de uma notícia é que me chamou a atenção para o nome de John Kennedy, 21 anos, de quem, até então, eu nunca tinha ouvido falar. Fui ler segurando uma gargalhada, mas, ao mesmo tempo, recompondo uma secreta e amarga lembrança de infância.

No Brasil, seguem surgindo esses jogadores da mesma linhagem singular da formação do futebol brasileiro, o “moleque primordial”, dali à “maturidade viril”, passando por “Macunaíma e seu outro” como observa José Miguel Wisnik no seu impressionante e apaixonado “Veneno Remédio – O futebol e o Brasil” (Companhia das Letras, 2008).

Para espanto meu, o nome do jogador não era apelido, era nome verdadeiro. Encontrei na Wikipedia, em inglês, o verbete biográfico: John Kennedy Batista de Souza, nascido em Itaúna, Minas Gerais, em maio de 2002. Que o verbete aparecesse apenas em inglês já seria indicativo de uma demarcação de território contra essa espécie de genial canibalismo linguístico tão brasileiro?

Quem incluíra o nome do jogador na enciclopédia digital? Provável que tenha sido para distingui-lo do “homenageado” personagem original: John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), ex-presidente dos Estados Unidos assassinado aos 46 anos.

No seu livro brilhante e quase total – de tanto amor, de análise tão profunda do futebol e suas relações com a cultura e o homem brasileiro –, José Miguel Wisnik comenta o uso de apelidos ou diminutivos adotados em larga escala pelos jogadores de futebol brasileiros (“de maneira quase inimaginável para um estrangeiro”).

Wisnik afirma que esse modo de tratamento – Garrincha, Pelé, Pinga, Bigode, Tostão, Grafite, Magrão, Dedé, Dadá, Didi, Dodô, Zito, Zico, etc. –, essas alcunhas do trato familiar que se transferem para o domínio público escondem o sobrenome do pai como símbolo da identidade pública e instauram uma identidade em que prevalece não a transmissão do modelo vertical da autoridade e da hierarquia, mas o laço horizontalizado e lúdico.

Entrei numa torcida muda para que ele se mantenha um homem decente, para longe da arrogância machista, da soberba nova-rica

Na visão de Sérgio Buarque de Holanda, segundo Wisnik, esse procedimento dribla tanto o peso solenizador da impessoalidade quanto o defrontar-se do indivíduo consigo mesmo. Mas o caso de John Kennedy Batista de Souza me parece ter um tanto disso (o lúdico, algo cômico), e um tanto da superação disso: o apelido que vira nome e acrescenta solenidade ao sobrenome do pai, status e estrangeirismo.

Desde a leitura da notícia sobre esse John Kennedy mineiro – um novo “moleque primordial” – que entrei numa torcida muda para que ele (já na sua “maturidade viril”, dando outro significado à expressão de Wisnik) se mantenha um homem decente, para longe da arrogância machista, da soberba nova-rica de certos tipos vergonhosos do futebol brasileiro – quase sempre pretos de origem pobre e invariavelmente casados com mulheres brancas –, hoje acusados inclusive de estupros, ou mesmo já condenados, mundo afora (o técnico Cuca, os jogadores Robinho e Daniel).

José Miguel Wisnik também observa, em seu texto, como o alcoolismo selou a morte social de Garrincha. “Morte social” que talvez (conclusão minha) venha a acometer esses supostos estupradores aqui citados. Mas esse tema não aparece no texto de Wisnik, escrito antes da maioria desses eventos.
Voltando à minha secreta e amarga lembrança evocada pela descoberta do John Kennedy de Minas Gerais, trata-se de uma passagem efêmera mas poderosa que o ex-presidente dos EUA tivera na minha infância. Quando ele morreu, eu tinha apenas seis anos de idade, mas já costumava observá-lo nas imagens em preto e branco da televisão da época.

Não tínhamos ainda TV em casa naquele início de anos 1960 e na pobreza da família em Recife. Assistíamos, minhas irmãs e eu, à programação mendigada pelo aparelho de uma vizinha, sentadas no chão da varanda da mulher (embora nem sempre fôssemos aceitas ali e ficássemos de esguelha em cima do muro baixo).

Às vezes quase chorava, querendo que aquele John Kennedy fosse meu pai, e não o bruto que tínhamos em casa

Pois eu observava o ex-presidente nos noticiários da “Aliança para o Progresso”, com seus dois filhos pequenos, ao lado da mulher, Jacqueline, ele tão carinhoso, de mãos dadas com suas crianças, todos tão elegantes naqueles casacos de frio dos Estados Unidos e naquela intrigante felicidade que pareciam viver.
Aquilo me deixava uma impressão funda, um desejo de ter um pai como ele. Às vezes quase chorava, querendo que aquele John Kennedy fosse meu pai, e não o bruto que tínhamos em casa, homem rústico, ameaçador, incapaz de qualquer demonstração de afeto.

Foi com esse misto de recordação amarga e riso na cara que fui conhecendo o nome de John Kennedy Batista de Souza, o jogador negro do Brasil do século 21, cuja figura era a incorporação antropofágica do branco, estrangeiro e presidente de outro mundo, em outros tempos.

Uma espécie de “Macunaíma e seu outro”, de Macunaíma ao reverso, o jovem Batista de Souza não virou branco como o personagem de Mário de Andrade, virou para além disso: estrangeiro e logo presidente! Virou mesmo o pai que eu tinha engendrado quando menina, ele (o jogador) que poderia ser meu filho ou meu neto, ele da minha origem de raça e de classe.

Em seu “Veneno Remédio”, Wisnik trata muito bem do papel desse “moleque primordial”, o “moleque-gandula” dos primórdios da formação do futebol brasileiro. Citando descrição de Mário Filho, Wisnik comenta que o moleque-gandula são “os moleques na cerca, de olho grande, esperando que uma bola fosse fora, assistindo aos treinos, pegando rebarbas, dispostos a tudo para entrar clandestinamente no jogo”.

E eis que um dia, contudo, conta Wisnik, o moleque-gandula rouba a bola, que era inglesa – do mesmo modo como o jogador mineiro rouba o nome e o cargo – e vai montar seu próprio time às margens do “rio Ypiranga”!

Ora, eis aí minha identificação com os Kennedy-meninos: pois não era eu também uma menina-gandula, clandestina negra sentada na varanda da vizinha branca, eu de olho grande, esperando que um dia o presidente estrangeiro saltasse para fora da tela e me abraçasse com ternura? Ora, fui aprender inglês muito cedo, aos 12 anos de idade, logo que minha família se mudou para São Paulo – este o meu roubo de bola, o meu canibalismo, a minha antropofagia linguística, minha vingança inútil.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É autora, entre outras dez publicações, do romance “As Mulheres de Tijucopapo” (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos “Mulher Feita” (ed. Fósforo, 2022).

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