Gloria Kalil: 'O Planalto abriu a porta para o palavrão' — Gama Revista
Sociedade

Gloria Kalil: ‘O Planalto abriu a porta para o palavrão’

Jornalista autora de série de livros sobre elegância acredita que uma era da rudeza emergiu da atual política e da internet

Isabelle Moreira Lima 05 de Maio de 2021
Bob Wolfenson / Divulgação

Entre muitas outras coisas que faltam ao Brasil de 2021, uma delas é o que chamamos de boas maneiras. Estamos vivendo uma espécie de era da grosseria e da incivilidade no país e são as instituições mais altas que dão o exemplo. A análise é da jornalista e escritora Gloria Kalil, célebre por seus manuais de elegância, a série “Chic”, publicada desde 1999 por diversas editoras. Ela avalia que foi o Planalto o primeiro a abrir a porta para o palavrão. “Esse tom vem de quem deveria dar o exemplo, mas o que fizeram foi liberar a grosseria. É uma coisa meio violenta”, diz.

Gloria conversou com a Gama sobre esses tempos de rudeza e a importância da delicadeza ao comentar o episódio que culminou na demissão de Diogo Mainardi nesta terça-feira (4), após 17 anos de participação no programa “Manhattan Connection”. No episódio exibido no dia 28 de abril, o comentarista insultou o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, convidado do programa.

É esse tom de quem deveria dar o exemplo, o Planalto, que liberou esse tipo de grosseria. É uma coisa meio violenta

Ao ser recebido pelo jornalista Lucas Mendes, Kaykay foi alertado que seria uma discussão com pessoas que não pensavam como ele. De Veneza, Diogo Mainardi começou sua participação com a afirmação: “Não estou a fim de ouvir suas baboseiras”. Daí, foi para muito pior, como é possível assistir neste vídeo e o programa é concluído com um apito para encobrir um palavrão — o que levantou discussões sobre o programa ser exibido ao vivo ou gravado e a real necessidade da passagem ser incluída nas transmissões.

O que você faz quando recebe alguém em casa? Em um comentário feito em seu Instagram, Gloria foi categórica: “Você tem obrigação de que o convidado seja muitíssimo bem tratado”. Não foi o que aconteceu no programa, ela diz e aponta o dedo para os anfitriões Lucas Mendes e Caio Blinder, que riram dos insultos proferidos por Mainardi.

Para ela, a situação é fruto de um fenômeno maior, que envolve não só políticos, mas a maneira como as relações são construídas na internet. Leia abaixo trechos da entrevista.

A internet borrou os limites do público e do privado, essa facilidade de todo mundo se comunicar e se expressar da forma que quer

A grosseria como regra

“Está liberado um tom mais grosseiro. Sem dúvida nenhuma tem a ver com o tom dos ministros, com o tom do Planalto, que abriu a porta para o palavrão. É esse tom vindo de quem deveria dar o exemplo que liberou esse tipo de grosseria. É uma coisa meio violenta. E há também uma volta ao passado: vejo aquele comercial do Bernardinho com o filho em que falam sobre vantagem, que remete a uma volta ao passado, penso no Gerson, jogador de futebol que ficou célebre pela frase “eu gosto de levar vantagem em tudo”, a lei de Gerson+. Tinha um tom meio grosseirão também, de passar na frente dos outros. Durante um tempo era para ser engraçado, mas virou uma coisa muito sem jeito, muito sem trato.”

Tintas carregadas

“Essa grosseria é uma coisa recém-liberada, mas sempre houve uma pontinha em um tom mais contido. E não é uma coisa só brasileira, nos Estados Unidos acontece muito também, sobretudo na época do Trump. Mas a internet está borrando os limites do público e do privado, essa facilidade de todo mundo se comunicar e se expressar da forma que quer, criando uma nova linguagem que a gente não sabe como vai ser. Deixando e fazendo da língua o que quer e o que não quer.

A internet como motor

“Sem dúvida é algo que tem a ver com a internet. Essa comunicação privada ou semiprivada dá abertura para essa folga com a língua portuguesa, com a maneira de se expressar. As pessoas postam livremente o que quer que venha à cabeça porque há uma indiferença sobre o que é público e o que é privado. Essa sensação dá um tom de porteiras abertas. Não acredito que tenha a ver com a falta de sociabilidade da pandemia. Mas há uma pressuposição de intimidade, que permite que se fale de qualquer jeito em qualquer tipo de conversa. A folga com que se fala palavrões hoje no cotidiano… Foi isso o que aconteceu naquele ‘Manhattan Connection’, ficou claro ali a grosseria.”

O casa do Manhattan Connection

“Eu fiquei mais chocada ainda com o Lucas Mendes do que propriamente com o outro [Diogo Mainardi], que eu sei que é uma pessoa que não tem limites para falar. O Lucas Mendes e o Caio Blinder ficaram rindo, meio abobalhados. Que falta de pulso, de censo! Um é dono do programa, editor, como permite que um convidado seja tratado daquela maneira? Nem ficou chocado, achou normal. Aquilo foi triste. A grosseria ficou normalizada.”

Chic na internet

“Procuro fazer uma coisa mesclada no meu Instagram. Sou uma pessoa do mundo da moda, que saiu de lá, e depois entrei no comportamento muito fortemente. Já escrevi vários livros sobre o que as pessoas chamam de etiqueta. Mas a minha etiqueta não é como se toma café ou se o talher vai para lá ou para cá. O que me interessa é a forma de portar-se publicamente. No meu Instagram então eu alterno uma fala mais dura com outra mais suave, porque não sou cronista ou comentarista com obrigação de dar opinião sobre o noticiário. Meu compromisso é de comportamento, um tipo de estética da vida. A delicadeza é uma parte da estética que me interessa.”

O lugar da delicadeza

“Há tantos exemplos de solidariedade desde que começou a pandemia. Ela é uma forma muito grande de delicadeza, o olhar para o outro, um olhar que não é só do seu próprio umbigo. Há muitas manifestações de delicadeza no trato pessoal e acredito que essas grandes manifestações de solidariedade em tudo quanto é canto são uma resposta muito forte [à grosseria atual]. Vejo muitas possibilidades [de delicadeza], até com linguagens bem modernas, atualizadas. Alguns exemplos de pessoas que expressam essas ideias: a [psicanalista] Vera Iaconelli, o [escritor] Antonio Prata. Entendo que o Antonio Prata é uma pessoa que puxa pela delicadeza, um Contardo. Até a Tati Bernardi, que fala fala palavrão no lugar da vírgula, mas as ideias puxam para uma coisa coletiva, mais participativa. Até o palavrão você pode usar de uma forma delicada para expressar coisas delicadas. Essas pessoas se esforçam para dar uma civilidade.”

Diploma em civilidade

“Fui chamada por uma faculdade de medicina e odontologia para dar uma curso de civilidade, a São Leopoldo Mandic, em Campinas. Já dei quatro aulas no ensino à distância. É muito especial. Claro que há uma maneira geral de se falar, mas eu estou indo em cima de coisas do universo deles, sobre o trato com pacientes, sobre o tipo de reivindicação que se faz da classe médica, para que tenham ciência disso. A ideia é que tenham na faculdade um dos melhores ensinos técnicos da medicina mas a escola quer que eles também sejam os melhores médicos do ponto de vista humanístico. Isso mostra que há gente se preocupando com um comportamento civilizado e civilizatório dos alunos.”

A delícia de ser civilizado

“O que eu acho é que as pessoas têm que se dar conta que alguém civilizado, bem educado, é muito mais bem recebido em qualquer lugar. Eu estou falando de uma coisa bem prática: uma pessoa civilizada, uma pessoa educada, uma pessoa que olha para o Outro — com “o” maiúsculo — é certamente bem recebida em qualquer lugar e se dá bem em qualquer lugar.”

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