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ReportagemPropósito de vida ou preocupação eterna: a dor e a delícia de ter filhos
Vista socialmente como uma meta ‘sagrada’ de vida, a parentalidade também evoca dores de cabeça e obstáculos na vida pessoal e profissional
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Propósito de vida ou preocupação eterna: a dor e a delícia de ter filhos
Vista socialmente como uma meta ‘sagrada’ de vida, a parentalidade também evoca dores de cabeça e obstáculos na vida pessoal e profissional
No mundo, metade dos pais e mães sente uma intensa pressão social sobre a forma de criar seus filhos. Um terço se diz isolado e solitário. E mais da metade conta que precisou fazer concessões demais em sua vida pessoal. Ser pai, aliás, não é uma experiência única em todo o mundo. Ela varia entre países e regiões, tanto em termos culturais quanto econômicos, de acordo com fatores como segurança econômica e profissional.
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Todos esses dados e informações fazem parte da pesquisa Índice de Parentalidade, realizada em 2021 em 16 países. Considerando todos os fatores, que vão da saúde e finanças à igualdade de gênero na criação de filhos, o Brasil ocupa a penúltima posição, à frente apenas da China. Os dados, no entanto, refletem também uma dualidade inerente à posição. Apesar de todas as dificuldades que a pesquisa levanta, 80% dos pais no mundo dizem se sentir totalmente realizados nesse papel.
Sempre vai ter um tropeço, um tombo, uma lacuna entre o que você sonhou e aquilo que vai encontrar
Se é verdade que ser mãe ou pai é padecer no paraíso, o fato é que a parentalidade e as pressões que a cercam têm sido cada vez mais discutidas na sociedade, a ponto de mulheres já reunirem a coragem necessária para dizer que se arrependeram de ter tido filhos, algo considerado um tabu.
Na sociedade, a ideia de maternidade costuma vir acompanhada por uma noção de propósito de vida. A psicanalista Daniela Teperman lembra, porém, que construir imperativos, como a obrigação de amar seu filho intensamente, pode ser um caminho perigoso. “Mulheres que acabam de ter bebês ficam nesse desespero de achar que precisam amar mais, de sentir que não estão amando tanto quanto deveriam. E isso é extremamente angustiante”, explica.
Isso porque, diz Daniela, a vinda de um filho é sempre única e imprevisível, não importa o quanto a pessoa pense que está ou não preparada. “Sempre vai ter um tropeço, um tombo, uma lacuna entre o que você sonhou e aquilo que vai encontrar.” Até por isso, ela prefere não falar em prós e contras de ter filhos, pois a experiência muda para cada um.
A seguir, Gama fala de algumas dessas dificuldades e prazeres da parentalidade, a partir das experiências únicas de mães e pais com seus filhos.
Propósito versus preocupação
“Claro que eu amo enlouquecidamente e faria qualquer coisa pelas minhas filhas, mas também tenho vontade de ficar sozinha, também tenho saudade de não ter essa preocupação constante.” A fala da servidora pública Thaisy Fernandes, 34, mãe de duas meninas de quatro e seis anos, evidencia o quão contraditória pode ser a maternidade. Ela conta sobre a ocasião em que uma das filhas, com apenas 12 dias de vida, precisou ser internada. “Só mostra como esse amor dói, porque existe essa preocupação com o filho, uma carga que está sempre ali, não dá para tirar de você.”
Justamente por esses sentimentos duais, Thaisy resolveu escrever um livro, “A Mãe que me Pari” (Insular, 2019), em que reuniu cartas endereçadas às filhas sobre tudo que experimentou ao longo da maternidade. “Quando engravidei, senti um luto muito forte. E me questionei por não vivenciar o êxtase que todas as mães diziam sentir. A mulher independente, que saía e trabalhava fora, morria ali e dava lugar à mãe que me tornei”, conta. A dor e o sofrimento desse momento foram substituídos por um sentimento de propósito, atitudes pensadas a todo tempo para serem exemplo às filhas, e a vontade de deixar um legado. “Queria mostrar que essa confusão de sentimentos é normal.”
Quando engravidei, senti um luto muito forte. E me questionei por não vivenciar o êxtase que todas as mães diziam sentir
A preocupação com os filhos, no caso de mães negras, vai além do futuro profissional e do bem-estar pessoal — envolve uma questão de segurança. Ao entrevistá-las para sua dissertação de mestrado, “A Maternidade Tem Cor?” (Appris Editora, 2021), Luara Paula Vieira se deparou com mulheres extremamente preocupadas com a aparência e a limpeza dos pequenos. “Por serem negros, precisavam estar bem vestidos para ir à escola, para estar entre os amigos. As mães relatavam medo de que fossem discriminados, que a professora não desse tanta atenção.”
Uma dessas mães definiu a maternidade como uma experiência que, mentalmente, não tem pausa e é desgastante. “Ao longo da história, a maternidade foi colocada no lugar do sagrado, como se transcendesse o humano e fosse um instinto. Isso torna muito difícil para as pessoas admitir que cansam, se irritam e têm vontade de desistir.” Segundo ela, temos dificuldade em nos encararmos como seres contraditórios, que podem amar e odiar ao mesmo tempo, que vão cuidar, mas também querer desistir.
Carreira
Foi quando a bióloga e professora da UFRGS Fernanda Staniscuaski, 41, deu à luz seu segundo filho, que ficou claro o impacto da maternidade para sua carreira. “Na academia, existe uma temporalidade na questão da produtividade”, explica a cientista gaúcha. “Todas as vezes em que eu pedia auxílio financeiro para minhas pesquisas, vinha como justificativa que, embora não tivesse feito nada de errado, eu tinha ficado sem publicar ao longo de 2015 e 2016.”
A experiência negativa fez com que ela criasse o Parent in Science, projeto que levanta dados para políticas públicas de apoio profissional a mães e pais — no Brasil, a licença-maternidade vai de quatro a seis meses, enquanto para pais a duração é de cinco a 20 dias. “Um dos motivos para criar o movimento foi minha frustração de vir de uma carreira linear, ter um ‘deslize’ e já ser desconsiderada. Cheguei a me questionar se estava na carreira correta.”
Fernanda destaca que esse tipo de consequência, aliada aos gastos necessários com a maternidade, acaba forçando mulheres a adiar ou simplesmente não ter filhos quando optam pela carreira acadêmica. Ou então a desistir da profissão. “Obviamente qualquer escolha tem consequências”, diz a bióloga. “A questão é que ter filhos não pode ser um fator que expulsa mulheres da carreira. Essa não é uma consequência aceitável.”
Ter filhos não pode ser um fator que expulsa mulheres da carreira. Essa não é uma consequência aceitável
Mas, se ainda falta uma política de incentivo e compensação que equalize oportunidades profissionais, o período da gestação e dos primeiros cuidados com os filhos também é muitas vezes usado para repensar escolhas profissionais. Assim que ficou sabendo da gravidez, em 2018, a baiana Lorena Nonato, 26, trancou a faculdade de engenharia que cursava. Em seguida, passou por um período marcado pela ansiedade e depressão.
“Para poder amamentar, eu abri mão de deixar meu filho com minha mãe ou dar mamadeira durante a noite”, conta a jovem. Sem estudar, ela passou a dar aulas particulares de matemática na tentativa de sustentar a casa sozinha, já que o noivo e pai da criança também enfrentava uma depressão.
Em meio às dificuldades, ela acabou encontrando alguma clareza sobre seus objetivos profissionais. “Num encontro de família, estávamos eu, minha irmã e duas primas conversando. Um senhor chegou e falou da minha prima como médica, da outra como advogada, da minha irmã como psicóloga, e de mim como mãe. Isso abriu um buraco debaixo dos meus pés porque eu sabia que não era só mãe.” Mas a engenharia, para ela, também já não trazia — e, na verdade, nunca trouxe — aquele brilho no olhar. Então, em 2020, fez um curso para se tornar doula, entrou na faculdade de enfermagem e começou a pesquisar a fundo o tema da maternidade. “Depois que meu filho nasceu, o mundo passou a existir para mim. As coisas começaram a acontecer, e eu, a verbalizar aquilo em que acreditava.”
‘The Mother’ (1895-1900), por Joaquín Sorolla Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
Desigualdade de gênero
Por mais que hoje as mulheres tenham mais liberdade para escolher não ser mães — em 2014, o El País já noticiava a geração NoMo, abreviação para “not mothers”, de mulheres que não querem bebês –, a maternidade ainda recai muito sobre o ombro delas. Ao atingirem determinada idade, iniciam-se os questionamentos incessantes sobre casamento e filhos. A pressão evolui até uma autocobrança para não ter nenhum tipo de defeito. “Cuidar de filhos ainda é visto como tarefa da mãe, e a penalização acaba sendo muito maior para ela”, explica Fernanda Staniscuaski. “Ser mãe na nossa sociedade é um saco, e as pessoas ficam impressionadas quando escutam isso, mas é verdade. O homem é capaz de cuidar e amar o filho da mesma maneira, mas são as mulheres que se ressentem por conta do instinto materno, do amor incondicional.”
Cuidar de filhos ainda é visto como tarefa da mãe, e a penalização acaba sendo muito maior para ela
O debate é complexo, como antecipa Fernanda, até porque, mesmo ao lado dos pais presentes e responsáveis, alguns momentos da maternidade são restritos à figura materna. “Mesmo sendo um pai que tenta fazer sua parte, impacta bem menos na minha vida”, conta o professor de bacteriologia da UFF Bruno Pena, 39. “Na madrugada, quem precisa realmente acordar é a mãe. A gente até ajuda, mas fica sem função, principalmente nesse início, quando o bebê só acorda, mama e volta a dormir.” Mas Pena reitera a importância de dar todo o suporte possível, programar as atividades e dividir as tarefas — ou vai acabar virando um problema.
A socióloga Luara Paula Vieira explica como o espaço doméstico foi historicamente atribuído às mulheres, e o cuidado com os filhos vem no pacote. “Os homens têm filhos e são os pais que podem ser. Mas, quando as mulheres são as mães que podem ser, aí é ruim, não é uma boa mãe. Há essa expectativa de que a mulher é capaz de gerar algo divino e sagrado.”
A chegada dos filhos, entretanto, pode ser uma oportunidade para dividir de maneira mais igualitária o espaço doméstico. “Deixamos bem organizado quem leva, quem busca. Quando não conseguimos, já acionamos nossa rede de apoio”, conta Bruno Araújo. “Dividimos as tarefas como podemos, e de forma que ambos participem do processo.”
Qualidade de vida
Tornar-se pai ou mãe muitas vezes exige que algumas atividades, como trabalho e estudo, sejam remanejadas ou até colocadas em suspensão. “A forma como escolhi maternar envolvia uma dedicação que necessitava muita presença”, conta e exemplifica Thaisy Fernandes. Em alguns países, e dependendo da rede de apoio disponível e da realidade socioeconômica dos cuidadores, é possível dar uma pausa mais ou menos longa nessas atividades. Para Bruno Pena, “falta muito apoio em termos profissionais para quem vai se tornar pai ou mãe. Falta tempo para se dedicar a isso sem ônus nenhum”.
Por mais que alguns programas de lazer também fiquem mais restritos com a chegada dos filhos, Pena enxerga uma satisfação diferente. “Com uma criança muito nova, por exemplo, é melhor ir a lugares tranquilos, que permitam a amamentação. Mas, quando você está a fim de ter, nem percebe isso. Torna-se um novo tipo de lazer.”
Uma coisa é parir, a outra é maternar. Na maternidade, toda escolha tem uma renúncia
Já Lorena Nonato conta que, enquanto acompanhava pelas redes sociais amigos e conhecidos saindo e se divertindo, se questionava como daria conta de maternar. “Uma coisa é parir, a outra é maternar. Na maternidade, toda escolha tem uma renúncia. Num primeiro momento, abri mão de muitas coisas.” Seja privação de sono ou falta de tempo para realizar atividades de lazer, fato é que a chegada dos filhos causa mudanças na vida dos cuidadores.
Existem contextos, porém, em que a parentalidade pode ser mais simples do que em outros. Luara Paula Vieira explica que ter um filho em uma realidade em que as necessidades básicas de moradia, saúde, educação e lazer são supridas é um tipo de experiência. Outra, completamente diferente, é ter a responsabilidade de cuidar e criar outro ser humano em uma situação de escassez e sem rede de apoio. “Isso com certeza vai mudar o olhar que o indivíduo tem para a maternidade.”
Reorganizando a vida
O professor Bruno Pena não enxerga como sacrifícios as renúncias que pai e mãe têm que fazer quando optam por gerar um rebento. Em vez disso, prefere chamar de consequências de uma decisão. “Não vejo como negativo tornar o trabalho minha segunda prioridade. Para alguns pode ser, mas para mim nunca foi.” Considera, no entanto, que adaptar a rotina para incluir os cuidados com a criança é um dos pontos mais difíceis da parentalidade.
O principal impacto, segundo ele, é ter menos tempo para se dedicar aos objetivos profissionais e precisar readaptar horários, às vezes indo até contra preferências pessoais. “Sempre gostei de trabalhar à noite. Dava 20h, eu sentava na frente do computador e ia até a madrugada, porque de manhã meu cérebro não funciona tão bem.” Agora, teve que mudar a agenda e ainda otimizar o período de trabalho, já que possui menos tempo disponível. “Te consome mais tempo, te deixa mais cansado e você rende menos.”
A paternidade mudou minha vida por completo e positivamente
Por outro lado, essa reorganização da vida não é necessariamente negativa, pois pode vir acompanhada de uma mudança radical na forma de enxergar o mundo. Fernanda Staniscuaski, do Parent in Science, aponta que o lado considerado ruim de ser mãe ou pai vem mais da sociedade do que da maternidade em si. Para ela, ser mãe trouxe novas visões de mundo e até novas habilidades. “A empatia, a flexibilidade e tentar, na medida do possível, manejar o tempo e dividir melhor a rotina de trabalho.”
Bruno Pena, que diz ainda não saber se é um pai apaixonado ou só otimista, vai mais longe ao revelar que ter filhos fez com que reavaliasse toda sua vida. “Eu podia optar por trabalhar no fim de semana, mas meu filho ia crescer sem me ter na vida dele.” E, apesar de ter que readaptar toda uma rotina, também afirma estar aprendendo com os filhos novas formas de lidar com as pessoas, o que tem ajudado constantemente no contato com seus alunos e doutorandos. “A paternidade mudou minha vida por completo e positivamente.”
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