6 perguntas para quem pretende ter filhos

Mais de 9 milhões de crianças vieram ao mundo graças às técnicas de fertilização assistida desde o nascimento do primeiro bebê de proveta, a inglesa Louise Brown, em 1978 – a pioneira no Brasil foi a paranaense Anna Paula Caldeira, em 1984. Durante quatro décadas, os avanços nessa área aumentaram de maneira significativa as chances de pessoas inférteis conseguirem um filho. É o caso da ICSI (injeção intracitoplasmática de espermatozoides), que introduz um espermatozoide dentro do óvulo para a fecundação in vitro; do diagnóstico pré-implantacional, estudo genético dos embriões produzidos em laboratório para transferir ao útero os mais saudáveis; e da evolução dos métodos de congelamento de sêmen, embriões e óvulos.

Ainda assim, os especialistas em reprodução humana se deparam com uma limitação: o envelhecimento dos ovários. “A mulher conquistou independência financeira e sexual e sua expectativa de vida dobrou no intervalo de um século, mas seus ovários continuam funcionando como em 1900, quando ela vivia, em média, 45 anos”, afirma o ginecologista Paulo Gallo, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “O envelhecimento dos ovários segue um ritmo totalmente desconexo do envelhecimento do restante do corpo”.

A fertilidade feminina começa a cair aos 35 anos, despenca após os 40 e pode zerar a partir dos 44. “Figuras públicas passam a falsa esperança de que todo mundo pode engravidar aos 45, 50 ou até 60 anos, mas é muito difícil engravidar naturalmente e com os próprios óvulos a partir dos 42 anos”, atesta a ginecologista e especialista em reprodução humana Silvana Chedid, de São Paulo. A saída é recorrer a óvulos doados ou aos próprios gametas congelados anos antes. Assim, ao decidir começar a família tardiamente, a mulher pode ser pega de surpresa pela dificuldade de procriar. O homem, também. Apesar de fabricar espermatozoides praticamente a vida inteira, a partir dos 45 anos está sujeito a uma queda gradual na quantidade e na qualidade que pode impactar as chances de gravidez. Portanto, quem pretende ter filhos precisa refletir com antecedência para fazer escolhas conscientes em vez de deixar tudo por conta da biologia.

Conhece o ritmo da fertilidade feminina?

Mesmo que a mulher não se case tão jovem quanto na virada do século 20 (quando a média era aos 14 anos), o pico da fertilidade acontece entre 15 e 25 anos de idade. Segundo Paulo Gallo, aos 6 meses de vida intrauterina, a menina tem de 4 a 6 milhões de folículos (estruturas onde crescem os óvulos). Ao nascer, esse número já diminuiu para 1 a 2 milhões e, na primeira menstruação, caiu para 400 mil. Ao longo da vida, a mulher vai perdendo de mil a 1,5 mil folículos por ano, até que um dia essa reserva se esgota.

Segundo dados do IBGE, a faixa em que as brasileiras mais têm filhos coincide com o pico da fertilidade, entre 20 e 29 anos. Mas está havendo aumento na porcentagem das mães tardias, entre 30 anos e 39 anos (22% em 2000 e 34,2% em 2020) e aos 40 anos ou mais (2% em 2000 e 3,7% em 2020). É nessas duas últimas faixas que elas mais procuram auxílio para engravidar, justamente quando a fertilidade começa a cair: 75% das pacientes têm 35 anos ou mais e 32% já passaram dos 40 anos, informa o ginecologista Edson Borges Júnior, especialista em reprodução humana que organiza o Congresso Brasileiro da especialidade marcado para agosto, em São Paulo. Enquanto aos 30 anos as chances de gravidez por fertilização assistida chegam a 60%, aos 40 anos diminuem para 20%, aos 42 anos ficam em 10% e aos 44 anos não passam de 1%. Além da quantidade restrita, a qualidade dos óvulos deixa a desejar, o que aumenta o risco de malformações fetais, anomalias cromossômicas, aborto e parto prematuro.

Acha que homens não precisam se preocupar?

Estudos têm mostrado que a idade do homem também influencia nas chances de reprodução natural e assistida – embora o declínio na fertilidade masculina após os 45 anos seja mais lento. Depois de analisar 19 mil ciclos de fertilização in vitro realizados por 7.753 casais em Boston, nos EUA, entre 2000 e 2014, pesquisa liderada pela especialista em biologia reprodutiva Laura Dodge, da Escola de Medicina de Harvard, localizou maior índice de danos no DNA dos espermatozoides com o avanço dos anos. Os cientistas também concluíram que as taxas de gravidez na mulher de 30 anos chegam a 73% com um parceiro da mesma faixa etária (30 a 35 anos), mas se ele estiver entre 40 e 42 anos, caem para 46%.

Para complicar, observa-se uma piora generalizada na qualidade do sêmen. Entre 1973 e 2011, a contagem média de espermatozoides de homens ocidentais caiu 59%, segundo cálculos da epidemiologista americana Shanna H. Swan, professora de Medicina Ambiental e Saúde Pública do Hospital Mount Sinai, em Nova York, e autora do livro “Count Down” (Contagem Regressiva em tradução livre, Editora Scribner, 2021). A explicação seria a exposição frequente a agentes químicos por meio de poluição, radiação, alto consumo de carnes vermelhas e adoçantes e sobretudo o contato com os disruptores hormonais, substâncias químicas liberadas pelas embalagens plásticas e presentes em cosméticos e produtos de limpeza, que podem enganar nossas células e acarretar uma redução nos níveis de testosterona. Segundo Paulo Gallo, atrapalham a fertilidade em duas frentes: diminuem a contagem de espermatozoides e aumentam o risco de endometriose nas mulheres.

Então, pode acontecer de um rapaz de 20 anos ter 200 milhões de espermatozoides, sendo 80% móveis, enquanto outro possui apenas 15 milhões, sendo 42% móveis. “Este último está no limite normal inferior, portanto ao chegar aos 45 anos corre mais risco de ficar abaixo do normal”, diz o ginecologista. Fora isso, existem evidências de que a idade paterna elevada (após os 50 anos) aumenta o risco de malformações e doenças genéticas como a síndrome de Down, deixa a criança mais vulnerável a distúrbios psiquiátricos como esquizofrenia, autismo e transtorno bipolar, e sobe as probabilidades de complicações durante a gestação, como diabetes, hipertensão arterial, abortamento e parto prematuro, informa Edson Borges.

Sabe quando vale a pena fazer um check-up da fertilidade?

As consultas anuais ao ginecologista não se destinam apenas à prevenção de câncer. Oferecem uma oportunidade de conversar sobre fertilidade, orienta Paulo Gallo ao destacar que planejamento familiar não se resume à contracepção, envolve também programar os filhos que se quer ter (quantos e quando). Assim, “se aos 30 anos a mulher pensa em ser mãe, mas não tem perspectiva de engravidar a curto ou médio prazo, esta é uma boa hora de avaliar sua reserva ovariana”. O check-up da fertilidade é ainda mais indicado para quem tiver mãe, tias ou irmãs que apresentaram menopausa precoce. É possível herdar essa tendência, que encurta o período reprodutivo. Mas também há mulheres que param de menstruar cedo sem histórico familiar.

Dois exames são utilizados para avaliar a reserva ovariana: a dosagem sanguínea do hormônio anti-Mülleriano (AMH) e o ultrassom transvaginal com a contagem de folículos antrais. O AMH é produzido por células ao redor do óvulo enquanto este se desenvolve, portanto serve de marcador: se estiver mais baixo, há menos óvulos disponíveis; se estiver mais alto, indica mais óvulos bons. O melhor é estar acima de 1.1. O ultrassom transvaginal, feito durante o terceiro e o quarto dia da menstruação, possibilita visualizar e contar os folículos antrais, aqueles que ainda não se desenvolveram, mas podem responder ao estímulo hormonal. Menos de quatro por ovário é indício de reserva baixa.

Os dois métodos não preveem quando será a menopausa, muito menos se a mulher conseguirá engravidar, mas permitem fazer uma projeção sobre a reserva ovariana futura e a possível resposta aos tratamentos de fertilização assistida. “Se a reserva ovariana estiver baixa, ela pode tomar providências [adiantar a gravidez ou congelar óvulos] para evitar problemas futuros”, esclarece Silvana Chedid. A ultrassonografia é oferecida pelo SUS e pelos planos de saúde, já a dosagem do AMH não é coberta pelos sistemas público e privado.

A possibilidade de dosar o AMH no fio de cabelo foi levantada durante a reunião anual da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia, em 2020. O estudo conduzido pelo estudante Sarthak Sawarkar sob orientação do Professor Manel Lopez-Bejar, da Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha, acompanhou 152 mulheres entre 18 e 65 anos e demonstrou que os níveis de AMH no cabelo se equiparam aos níveis sanguíneos. Por enquanto esse teste está em fase experimental. Mas já existem no país startups que oferecem aconselhamento reprodutivo feminino, caso da Oya Care. O kit para dosagem do AMH no sangue é enviado pelo correio, a mulher colhe seguindo as instruções, devolve o material pelo correio, recebe em casa a interpretação do resultado e tem acesso a ginecologista para esclarecer dúvidas. “São iniciativas interessantes que favorecem o autoconhecimento e podem ser úteis quando o próprio médico não aborda essa questão”, considera Silvana Chedid.

Já o check-up da fertilidade masculina é mais simples: basta fazer um espermograma com material colhido durante a masturbação. “Homens solteiros dificilmente se preocupam com isso porque não sofrem a mesma pressão que a mulher para ter filhos”, pondera Paulo Gallo. A sugestão é realizar o primeiro antes dos 30 anos. “Se houver algo errado, por exemplo uma doença que prejudique a fertilidade, podemos tratar logo. E se a contagem do espermatozoide estiver baixa, em cinco anos a tendência é piorar, então o homem pode pensar em congelamento do sêmen”, diz o ginecologista. Para ser considerado normal, a amostra deve ter um valor igual ou superior a 15 milhões de espermatozoides por ml.

Tem idade ideal para congelar óvulos/esperma?

“Quanto antes, melhor, se possível entre 25 e 30 anos, para obter e guardar óvulos e espermatozoides de ótima qualidade”, informa Silvana Chedid. Enquanto a técnica de congelamento de sêmen é praticada há décadas, a de óvulos se consolidou nos últimos 15 anos com o desenvolvimento da vitrificação, que produz congelamento rápido, sem a formação de cristais de gelo capazes de danificar a célula na hora de descongelar.

Como a mulher só produz um óvulo por ciclo, é preciso utilizar medicações que estimulem a ovulação por um período médio de dez dias. Essas drogas são aplicadas em injeções subcutâneas, pela própria mulher. O crescimento dos folículos é acompanhado por ultrassonografia. Quando os óvulos amadurecem, são removidos dos ovários através de punção, sob sedação. Em mulheres jovens, com boa reserva, é possível tirar até 22 óvulos. Conforme a idade avança, ainda que os ovários produzam dez óvulos, a parcela de células em condições boas para congelar vai diminuindo.

O custo do congelamento de óvulos varia de 9000 a 15 mil reais, fora a taxa de manutenção anual entre 500 e 1500 reais. É bem superior ao do congelamento do sêmen (cerca de 1000 reais) porque envolve medicação, exames sucessivos, anestesista e sala cirúrgica por requerer um procedimento invasivo. Já a coleta do esperma, feita pelo próprio homem, permite acesso fácil a milhões de células germinativas.

O que mais se pode fazer hoje para ter filhos amanhã?

O estilo de vida tem peso importante na fertilidade, salienta Edson Borges. Daí a necessidade de cultivar hábitos saudáveis: alimentação equilibrada, exercícios físicos regulares, sono suficiente, alívio do estresse. A queda da fertilidade é mais agressiva na presença de fatores como cigarro, bebida alcoólica, peso excessivo, diabetes e hipertensão mal controladas. Dietas desregradas, menor consumo de peixes e vegetais e a falta de sono afetam a possibilidade de gravidez.

Também é fundamental diagnosticar e tratar logo doenças associadas à infertilidade: endometriose, cistos no ovário, miomas (tumores benignos do útero), varicocele (dilatação anormal das veias dos testículos) e infecções sexualmente transmissíveis, como gonorreia e clamídia, que podem causar entupimento das trompas, além de inflamação da uretra e dos ductos onde os espermatozoides amadurecem e ficam armazenados. De acordo com o ginecologista, esses cuidados potencializam as chances de gravidez. Mas não há garantia: “Cerca de 10% dos casais com problemas de fertilidade são saudáveis e apresentam exames normais”.

Qual é a situação de quem teve covid-19?

A infecção pelo SARS-CoV-2 pode levar a uma diminuição leve e temporária na produção de espermatozoides, mas não a ponto de influenciar a gravidez, avisa Edson Borges. Quanto à reserva ovariana, embora tenham sido encontrados receptores do vírus no ovário, um estudo conduzido pela pesquisadora espanhola Maria Cruz Palomino entre maio e junho de 2020 constatou que a fertilidade feminina não é afetada pelo vírus. As chances de sucesso reprodutivo permanecem as mesmas de antes da doença. O trabalho foi apresentado no encontro anual da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE) realizado em 2021. Já a vacinação não traz prejuízo à fertilidade, ao contrário do que foi alardeado por fake news.

O médico observa que no início da pandemia, diante da gravidade dos casos e do desconhecimento da doença, as pessoas diminuíram a busca por serviços de reprodução assistida. Metade das mulheres de Nova York com crianças pequenas que tentavam engravidar do segundo filho antes da covid-19 parou o tratamento na primeira onda e um terço das que planejavam encomendar um irmão, mas não haviam começado os procedimentos, adiaram esses planos, de acordo com pesquisa com 1.179 mães publicada em setembro no JAMA Network Open.

Depois ocorreu efeito rebote, tamanho aumento na procura que 2021 foi o ano recorde nos tratamentos de fertilização assistida, segundo Edson Borges. Houve, inclusive, crescimento de 40% no congelamento de óvulos entre julho a novembro do ano passado se comparado ao mesmo período do ano anterior, conforme dados divulgados pelo Grupo Huntington. “A pandemia pode ter despertado nas pessoas a sensação de finitude. Os filhos são nosso legado, a perpetuação de nossa existência”, diz o ginecologista. Mas o relógio biológico pode ser uma barreira difícil de transpor para quem esperar demais.