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Conversas‘Não precisamos de mais ciclovia, mas de compartilhar o espaço público’
A urbanista Paula Freire Santoro diz como o culto ao carro está na raiz de uma cultura que mata ciclistas e exclui mulheres
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‘Não precisamos de mais ciclovia, mas de compartilhar o espaço público’
A urbanista Paula Freire Santoro diz como o culto ao carro está na raiz de uma cultura que mata ciclistas e exclui mulheres
Quem vive nas grandes cidades brasileiras viu, nos últimos anos, o avanço de um traçado em muitas vias e a multiplicação de estações de compartilhamentos para bicicletas. Uma evolução para quem defende o uso do veículo sobre duas rodas como meio de transporte e não só para o lazer, mas que ainda o confina a determinados espaços e não estimula o compartilhamento das ruas.
“Muitas das nossas cidades são desenhadas para o carro”, diz a urbanista Paula Santoro. “Agora estamos vendo a gasolina a R$ 7,50 e aí o que aparece de solução? Carro elétrico. É impressionante como um modal individual motorizado [modal significa um tipo de transporte] é uma construção social de ascensão, de sucesso. Precisamos mudar muito a nossa visão como sociedade, não de mais ciclovia.”
Leonor Calasans/IEA USP
Professora de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e cicloativista, Santoro vê nessa valorização exacerbada do carro, aspectos de uma masculinidade que cultua a velocidade e o individualismo e que exclui as mulheres — vítimas do assédio nos espaços públicos e de quem se espera um determinado papel de gênero.
Algumas dessas questões foram tratadas pela urbanista quando orientou a tese de mestrado da pesquisadora Marina Harkot, cicloativista de 28 anos que foi morta por um motorista há um ano quando pedalava na avenida Sumaré, em São Paulo. Marina foi vítima justamente da situação que estudava e, passado um ano do caso sem julgamento, Santoro espera que o motorista, que segundo a investigação dirigia bêbado e em alta velocidade, não seja visto como um caso isolado.
“Nossa ideia não é ter ódio pelo cara, porque acho que ele é mais um, todo mundo conhece alguém assim. Na sua família, na sua roda de amigos existe esse ser que valoriza a velocidade, o carro, que não está nem aí para a bicicleta e o compartilhamento. São essas pessoas que a gente quer mudar”, diz. “Se ele não for penalizado, estamos perdidos. Mas se for penalizado como o louco fora da curva, também não ganhamos nada.”
Na conversa com Gama, Paula Santoro fala ainda sobre os prejuízos, inclusive para a economia, desse estímulo ao carro, da importância de campanhas que ensinem o compartilhamento das ruas aos motoristas, dos ganhos que podemos ter em adotar a bicicleta como modal de transporte diário e não apenas nas horas de folga.
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G |Nos sete primeiros meses de 2021, o número de ciclistas que morreram nas ruas de São Paulo aumentou 52% em relação a 2020, segundo uma pesquisa do Detran. Parece que a medida que aumenta o número de ciclistas, aumenta o de acidentes. Ainda há muita resistência ao uso da bicicleta como meio de transporte?
Paula Santoro |Acho que sim. A gente tem uma sociedade do carro, o que nos constrói, inclusive, como seres sociais. Valorizamos socialmente quem tem carro. Existem algumas contagens dizendo que o número de ciclistas também aumentou, o que é muito difícil para nós, como academia, afirmar. Para quem ficou na pandemia do Centro de São Paulo, a percepção é de que aumentou a quantidade de gente se deslocando de bicicleta, principalmente para entrega, usada como instrumento de trabalho. Mas ainda temos uma resistência muito grande às políticas voltadas para a bicicleta. Há uma associação do carro muito forte com aspectos da masculinidade. Ter carro, correr, gostar de velocidade faz parte de uma série de aspectos muito valorizados na masculinidade branca que acabam se refletindo numa cultura de compra de carro.
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G |Essa é uma cultura também que inclui as mulheres?
PS |Essa não é uma cultura que vê as mulheres. Elas andam mais a pé, como passageiras, ou usam o carro para o cuidado, para levar filhos para o colégio. Tem uma pesquisa da Haydée Svab [especialista em mobilidade ativa e inclusiva] que mostra que as mulheres que passam a ser motoristas de carro são as que têm maior renda e uma família maior. Além disso, culturalmente, as mulheres não aprendem a andar de bicicleta. Tem uma associação ao corpo feminino, tido como um corpo que tem que performar um papel social, em que a bicicleta não se encaixa. As mulheres têm que vestir roupas específicas para o trabalho, o que envolve, por exemplo, comprimento da saia para evitar assédio. Imagina andar de saia de bicicleta? Na sociedade que a gente tem é um convite ao assédio. Tem que ser feminina, não pode ser “desleixada”, não pode chegar suando… Perguntei uma vez para alunas por que não usavam bicicleta e uma delas disse que até tinha um lugar no escritório para tomar banho, mas uma menina que chega de cabelo molhado no trabalho fica mal falada. Então, mesmo tendo toda infraestrutura, mulheres aderirem à bicicleta como modo principal de transporte envolve um questionamento do seu papel de gênero. Ao nosso corpo é atribuída uma ideia de que não se deve fazer esporte por essa sociedade heteropatriarcal. E andar de bicicleta está nesse rol.
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G |Você já disse em entrevistas que não é a falta de ciclovia que mata as pessoas, mas a falta de cultura de compartilhamento da cidade. Como mudar essa cultura e fazer das grandes cidades espaços de convivência também para os ciclistas?
PS |Eu aposto muito nas crianças. Sou de uma geração que não reciclava lixo e hoje em dia muita gente sabe da necessidade, se envolve. São as crianças, muitas vezes, que cobram os pais. Acredito na educação. Vi, por exemplo, uma capacitação feita por cicloativistas com motoristas de ônibus. Os motoristas eram colocados em uma bike parada pedalando. E vinham ônibus e passavam do lado. Muitos deles caíam da bike. Isso para entender a leveza de um modal perto do outro, a importância do compartilhamento. Eu quando estou dirigindo e vejo um ciclista troco de faixa. Sei que, se ele cair, tem que ter 1,5 metro de distância, e os carros não fazem isso. Tem que se colocar no lugar do outro. Muitas das nossas cidades são desenhadas para o carro. Isso faz com que, quem anda a pé, tem que andar quilômetros para cruzar uma rua, porque o farol tem que ser rápido para não travar os carros. Ou seja, o carro pauta, inclusive, onde a gente vai cruzar uma via e deveria ser o contrário, a prioridade devia ser dos pedestres. Uma pesquisa do Eduardo Vasconcelos [especialista em mobilidade urbana] mediu o trânsito nas ruas ocupadas na hora do rush em São Paulo e viu que só 15% da frota está nas ruas. Ou seja, 85% está dentro de casa ou estacionado na rua. Agora estamos vendo a gasolina a R$ 7,50 e aí o que aparece de solução? Carro elétrico. É impressionante como um modal individual motorizado é uma construção social de ascensão, de sucesso. Como a gente quebra isso? Tem que mudar muito a nossa visão como sociedade. É diferente de dizer que tem que ter mais ciclovia.
Muitas das nossas cidades são desenhadas para o carro. Temos que mudar a nossa visão como sociedade
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G |Em 2016, Fernando Haddad perdeu a reeleição para João Doria (PSDB), que se elegeu com um discurso contrário às ciclofaixas e ciclovias e o slogan “Acelera SP”. No entanto, ele manteve as mudanças. Acredita que esse debate do uso da bicicleta como modal de transporte vem avançando?
PS |Hoje nós temos nas cidades uma série de políticas que visam esse compartilhamento, evitando acidentes. Em geral, pedestres e ciclistas, que são os modos ativos, são os mais prejudicados. Sempre que uma pesquisa mostra aumento no número de ciclistas, também há aumento de acidentes. É quase um genocídio mesmo. Mas tem uma série de políticas que viraram pautas públicas importantes, como zonas com rebaixamento de velocidade dentro dos bairros, transformar os estacionamentos em zonas verdes ou infraestrutura cicloviárias, entre outras. Em tese, se você reduz o espaço para o carro, você desestimula o uso e estimula a migração para outros modais. Uma das medidas mais efetivas para evitar acidentes é reduzir a velocidade. Na hora que o Doria voltou atrás da redução de velocidades, voltamos a ter mais acidentes, é o óbvio. Os acidentes nas grandes cidades brasileiras levaram o trânsito a um problema de saúde pública. Uma política de mobilidade que mata tem custos muito altos para a saúde — desde acidentes fatais até pessoas que não conseguem mais se locomover e demandam uma aposentadoria por invalidez. Esse número cresceu absurdamente com as motos e vem acompanhado das bicicletas. A gente não põe isso na conta de uma política de mobilidade, mas desoneraria nossos hospitais consideravelmente.
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G |Mesmo assim, vimos mais ciclistas nas ruas. Essa é uma demanda da população?
PS |Em tese, o mundo aderiu às ciclofaixas na pandemia e o que fizemos em São Paulo? Nada. Ficamos achando que a política é segregar quando é compartilhar. E não fizemos nada para aumentar essa cultura. Não teve nenhum estímulo, mas mesmo assim as bicicletas entraram, porque são baratas para o trabalho. Infelizmente, num processo de exploração principalmente do homem negro entregador que, sem grana, usa uma bike compartilhada como seu instrumento de trabalho numa cidade não preparada para esse delivery. Tivemos um monte de entregador morrendo ou sendo explorado pela precarização do trabalho. O que a gente defende é que a bicicleta seja o modo de deslocamento principal nas nossas cidades ou complementar a um deslocamento que usa o metrô, trem, modos coletivos de alta e média capacidade. Essa é a agenda da bicicleta, não é só ter uma bike para o lazer. Não basta ter ciclovias para ter ciclistas. Tem que ter políticas para educação, compartilhamento entre os modais, campanhas não só para motoristas de carro, mas de ônibus.
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G |Em uma entrevista na época da morte da cicloativista Marina Harkot, que foi sua orientanda, você mencionou que ela também foi vítima do machismo estrutural na sociedade, já que as mulheres muitas vezes não se sentem seguras mesmo nas ciclovias. Pode explicar?
PS |Essa é uma ideia que a gente desenvolveu no mestrado da Marina. Quem estuda mobilidade parte de uma ideia central de que as pessoas escolhem o seu modal a partir de uma equação que é: quanto custa, quanto tempo vai demorar o deslocamento. Hoje, várias pensadoras tentam mostrar que essa escolha também se dá pela experiência. No caso das mulheres, se o lugar é iluminado, se tem gente por perto. Quando olhamos para as pesquisas, vemos que não necessariamente acontece alguma coisa naquele lugar para ser evitado. Essa sensação de insegurança molda o comportamento. Um trabalho recente de uma aluna minha concluiu que existe ainda uma imobilidade de algumas mulheres, que pela sensação de insegurança não vão a alguns lugares. Algumas vão, mas moldam o comportamento: escolhem com que roupa, que horas, usando que modal. A sociedade enxerga nosso corpo como algo que pode ser assediado. Isso ocorre desde em você andar a pé ou estar em um ponto de ônibus e alguém te cantar. E não tem recorte de idade, não importa a roupa que você esteja, é como se seu corpo estivesse ali para ser assediado. Recentemente, ficou famoso um vídeo de um cara que foi preso depois de passar de carro por uma ciclista, passar a mão nela e ela se desequilibrar e cair. Isso acontece muito.
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G |Isso se aplica ao caso da Marina?
PS |No caso da Marina foi um pouco assim. Ela era uma ciclista experiente, ativista, estudou a mobilidade da bicicleta e gênero. Na hora que ela morreu, os repórteres começaram a ligar e eu comecei a ficar muito brava porque perguntavam: “O que ela estava fazendo de bicicleta à noite?” O tipo de pergunta que é feita só para mulheres. Isso criminaliza, dá armas para o cara que a atropelou de carro em um lugar em que existem quatro faixas. Era um lugar bem iluminado, no meio do viaduto, à noite, não tinha trânsito e o problema é que ela saiu à noite. É como se ela que estivesse no lugar errado. O lugar de bicicleta pelo nosso Código de Trânsito é na rua, não a ciclovia. É compartilhando espaço. A gente não vai ter ciclovias segregadas da nossa casa até todos os lugares. Perguntavam se ela estava de capacete, isso não é obrigatório. Ela estava sempre, mas não seria o capacete que iria salvá-la. Ela foi atropelada por um carro a uma velocidade altíssima, que a pegou por trás, ela voou por cima. Não foi uma questão de estar com capacete ou estar na ciclovia. Se eu fosse ela, e a gente fazia esse caminho juntas, não estaria. Naquele trecho, historicamente aconteceram casos de caras empurrando mulheres para roubar bicicleta, a gente sabia de dois. Então, nem sempre ter a ciclovia significa ter segurança.
A Marina foi atropelada por um carro a uma velocidade altíssima, que a pegou por trás. Não foi uma questão de estar com capacete ou na ciclovia
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G |O seu colega professor Nabil Bonduki escreveu em um artigo recente para Folha que o atropelador da cicloativista precisa ser punido com rigor para que o caso não seja mais um a virar exemplo de impunidade. Você concorda?
PS |É muito forte essa sensação de impunidade. É muito constante você ser atropelada e o carro ir embora, não prestar socorro. A questão é que é muito ruim para quem lê a cidade, um lugar que mata ciclistas, achar que esse é um caso isolado, de um cara louco, alguém fora da curva. É esse homem que dirige em velocidade, que bebe, que tem matado os nossos ciclistas e pedestres. A gente não quer que seja um caso visto como um fato raro, mas como um problema estrutural de mobilidade, o não-lugar do compartilhamento de espaço, especialmente com as bicicletas. Acho errado a ideia de punição exemplar, gosto da ideia de não ter impunidade. Se você souber que se atropelar alguém ou andar em velocidade será multado ou parado, de alguma forma seu comportamento vai ser inibido. A nossa ideia não é ter ódio pelo cara, porque acho que ele é mais um, todo mundo conhece alguém assim. Dá para pensar na sua família, na sua roda de amigos, como existe esse ser que valoriza a velocidade, o carro, que não está nem aí para a bicicleta e para o compartilhamento. São essas pessoas que a gente quer mudar. Um cara que comprovadamente bebeu, estava em alta velocidade, se sair ileso dessa, estamos perdidos. Mas se ele for penalizado como um louco fora da curva, também não ganhamos nada.
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G |Na sua experiência como ciclista, você evita determinados caminhos por insegurança?
PS |Eu já fui assediada em todos os lugares, andando a pé ou de bicicleta. O cara te canta, assobia, tudo isso. Mas o que eu queria contar na verdade é [a experiência] do contrário. Morei um tempo em uma cidade europeia em que todo mundo tem bicicleta. Estava voltando de uma festa com um amigo e ele falou: “Vamos voltar por dentro do parque?” Falei: “Mas não tem perigo?”, e ele disse que não, o parque ficava aberto. Nunca tinha reparado que não posso ir em um parque à noite. Já está tão incrustado na gente os lugares em que não se pode ir, a sensação de insegurança que determina o comportamento, que só percebi que podia ir nesse lugar nesse dia. Depois disso, todas as vezes que eu saía à noite voltava por dentro do parque, sentindo que eu tinha autonomia. E claro que acontecem coisas num parque em Berlim, mas é outro modo de moldar o comportamento, eles não se retraem. Não tiram as pessoas do parque, mas iluminam, põe gente, fazem eventos à noite.
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G |As pessoas que temem usar a bicicleta nas ruas aqui costumam citar exemplos de fora, da Europa, para dizer que falta segurança. Mas, pelo que você falou, precisamos muito mais de uma mudança de cultura de compartilhamento do espaço público do que de obras. Estamos avançando nesse sentido?
PS |A gente avançou muito na construção de estruturas cicloviárias em São Paulo, mas precisamos avançar em bicicletários, para que a bicicleta possa ser a última “milha de acesso”, como se diz, ao trem, ao metrô. Temos poucos bicicletários, superlotados. Mas tem um monte de gente que anda de bicicleta, temos um cicloativismo muito legal, entregadoras mulheres e queer, uma série de oficinas que ensinam mulheres a andar e a consertar bicicleta. Colégio dando aula para as crianças aprenderem a andar de bike. Um monte de estratégias para ampliar esse público e esse modal, que é saudável. As políticas deram visibilidade às bicicletas nesse sudoeste valorizado de São Paulo, mas temos o maior número de ciclistas na periferia, usando em deslocamentos internos ou para acessar o trem. Temos estímulo para compra de carro, imagina se fosse para bicicletas? O preço alto da gasolina pode ajudar, mas em vez de pensar numa alternativa, as pessoas vão para o carro elétrico. Do que adianta? Vamos continuar brigando por espaço, na luta por velocidade. Ou seja, não é que conquistamos o lugar da bicicleta, estamos o tempo inteiro sendo ameaçados, tentando superar os desafios de ordem estrutural e imediata.
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CAPA Vai de bicicleta?
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