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ReportagemA ansiedade é pop
De “Divertida Mente 2” a novo álbum de Baco Exu do Blues, emoção sai do armário para virar meme e hit no cinema, na música e nos quadrinhos
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A ansiedade é pop
De “Divertida Mente 2” a novo álbum de Baco Exu do Blues, emoção sai do armário para virar meme e hit no cinema, na música e nos quadrinhos
Cabines “instagramáveis” com luzes coloridas foram montadas para o público tirar fotos durante a pré-estreia de “Divertida Mente 2” em São Paulo, no último dia 15 de junho. Cada uma tinha uma imagem de uma das emoções transformadas em personagens pelo longa da Pixar, e adultos e crianças se aglomeravam para posar ao lado de Alegria, Tristeza, Nojinho e seus companheiros de filme.
Uma das filas estava bem maior do que as outras e servia como um termômetro de qual emoção mais mobilizou a plateia. Era a cabine da Ansiedade. Os memes e posts que vieram depois confirmaram que a personagem laranja de olhos esbugalhados, cabelos selvagens e boca larga é a estrela do filme.
Uma análise dos últimos 12 meses de buscas no Google mostra que as pesquisas pelo termo Ansiedade começaram a subir no dia da chegada da sequência de “Divertida Mente” aos cinemas, atingiram o pico na semana seguinte e continuam acima da média até o fechamento desta reportagem. No YouTube, a busca pela palavra segue crescendo duas semanas após o lançamento.
A emoção que até alguns anos atrás era tabu ter se tornado protagonista de blockbuster mostra como o assunto saiu do armário
O fato de uma emoção que até alguns anos atrás era tabu ter se tornado protagonista do filme com maior bilheteria do ano mostra como o assunto saiu do armário para ganhar a esfera pública. A ansiedade é pop, e não só nas telas do cinema.
Ela aparece em uma das faixas do recém-lançado EP “Fetiche”, que levou o cantor e compositor brasileiro Baco Exu do Blues ao top 10 dos artistas mais ouvidos do mundo no Spotify e no Deezer no fim de junho. “Não se cobre tanto/ Você não se vê/ Nem como os olhos dos outros enxergam você/ A ansiedade te engana/ Você acredita mais nela do que em mim/ Porque?”, diz a letra de“Pausa da sua Tristeza”, que ele canta em parceria com Liniker.
O rapper falou publicamente, em outros momentos, sobre ter ansiedade — e sobre como isso influencia sua música. Em entrevistas, ele disse que assumir seus sentimentos é menos doloroso do que fingir que está tudo bem.
Em um post de 2023 no X (antigo Twitter), Baco refuta a ideia de que suas composições sejam simplesmente love songs (românticas) e lista questões de saúde mental que inspiraram algumas delas: “me desculpa jay-z – é sobre um surto bipolar; queima minha pele – É sobre ansiedade (…) girassois de van gogh – depressão (…)”.
Vencedora do prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e primeira mulher a desenhar ao vivo na bancada do programa Roda Viva, da TV Cultura, a quadrinista Carol Ito também transforma em arte seus desafios de saúde mental e emocional. A jornalista e ilustradora conta que começou a fazer quadrinhos em noites de insônia, durante um período com crises de ansiedade.
Apesar de o assunto aparecer em várias de suas tiras, ela relutou por um tempo em tornar pública sua própria experiência. Até que, em 2023, publicou “Inteiro Pesa Mais do que Metade” (ed. nVersos), sobre sua jornada cheia de altos e baixos lidando com a ansiedade e a depressão.
“Tive muito receio de fazer o livro, achei que iriam parar de me contratar para trabalhos, mas era puro preconceito. Escrever sobre isso me fez perceber que vivemos em um sistema que nos adoece muito, que muita gente passa por isso e não preciso me esconder pra conseguir viver”, diz.
Ilustração de Carol Ito, retirada do livro “Inteiro Pesa Mais do que Metade” (ed. nVersos)
Para Ito, o processo de escrita funcionou como uma ferramenta terapêutica e a ajudou a desconstruir o estigma em torno do tema. “O grande ganho foi elaborar as questões que eu sinto, as emoções e os pensamentos de forma mais organizada”, afirma.
É importante abordar esse tema pela arte porque ela produz sentidos que não são só racionais. Acessa lugares diferentes do que uma informação mais burocrática ou médica
A artista costuma receber mensagens de leitores que se identificam com seu sofrimento e até de profissionais de saúde mental que compram o livro para usar com os pacientes em consultório. “É importante abordar esse tema pelo viés da arte porque ela produz sentidos que não são só racionais. Acessa lugares diferentes do que uma informação mais burocrática ou médica. Tem a dimensão do afeto, da nostalgia, ainda mais quando é desenho. Toda criança já desenhou um dia”, afirma.
Em sua opinião, transformar o sofrimento psíquico em humor pode ser uma via de acesso ao tema para pessoas que não se interessariam por esse conteúdo a priori. Mas ela também vê um lado negativo. “Rola uma banalização. O meme deixa isso num lugar de não se levar a sério, o que por um lado é bom, mas por outro pode afastar as pessoas de um tratamento ou acolhimento em saúde mental”, afirma.
Auge da massificação
A naturalização das conversas sobre saúde mental, dentro e fora da internet, não é um fenômeno de agora. Desde 2020, quando a pandemia de covid-19 quase enlouqueceu boa parte da humanidade, transtornos e crises de ansiedade passaram a ser compartilhados sem tanto pudor.
Do influenciador Whindersson Nunes, que revelou sentir angústia todos os dias, ao cantor Wesley Safadão, que anunciou uma pausa na carreira para lidar com fortes crises de ansiedade, figuras públicas vêm admitindo sua vulnerabilidade diante dos desafios de lidar com transtornos de saúde mental. Além disso, séries de sucesso como “The Bear”, “Fleabag” e “Ted Lasso” trazem protagonistas cuja ansiedade causa sofrimento e até ataques de pânico.
Nos últimos cinco anos, as buscas pelo termo ansiedade mais do que dobraram no Brasil em relação aos cinco anos anteriores, segundo análise do Google Trends. Os internautas brasileiros ficaram em segundo lugar entre os que mais pesquisam a palavra, atrás somente dos ucranianos — que, vale lembrar, enfrentam uma guerra.
Consultorias de tendências detectaram esse fenômeno lá atrás e vêm acompanhando sua evolução ao longo dos últimos anos. “Em 2017, percebemos essa mudança de comportamento. Alguns movimentos, empresas e podcasts começaram a falar sobre ansiedade, burnout e emoções, algo que antes era super tabu”, afirma Mirela Dufrayer, gerente global de marca da WGSN.
A pandemia acelerou esse processo, que levou a um boom de conteúdos do tipo “todo mundo está estressado e ansioso” e, depois, sobre autocuidado. Em 2021, foram registradas mais de 20 bilhões de pesquisas pela hashtag #selfcare no TikTok. Com o tempo, esse otimismo exacerbado passou a ser criticado e visto como uma positividade tóxica.
Dufrayer explica que as curvas de tendências seguem uma sequência. Um assunto que futuramente vai se disseminar é introduzido pelos vanguardistas, geralmente profissionais das áreas criativas, que são os que experimentam algo novo. O tema é, então, incorporado por estilistas e outros profissionais influentes, passa a ser difundido por celebridades e criadores de conteúdo e, por último, chega às massas, até que se desgasta e é transformado em algo diferente — e o ciclo recomeça.
Segundo ela, “Divertida Mente 2” chega em um momento em que o assunto ansiedade está no topo da curva da massificação. O filme funciona como um mediador de conversas sobre emoções e sentimentos e atrai adultos de gerações mais novas, que cresceram com mais abertura para falar sobre isso e querem proporcionar aos filhos uma experiência parecida.
“Há um boom de adultos se identificando e querendo ter a oportunidade de se conectar com os filhos neste momento de diversão, que pode incentivar conversas sobre inteligência emocional”, afirma.
Mirela considera que o longa da Pixar explodiu muito rápido — o que confirma uma percepção de uma aceleração dos ciclos de tendência, com uma redução do tempo entre o surgimento e o desgaste. “Antes, demorava 20 anos. Já estamos em dez e o ciclo continua se encurtando, indo para cinco”, afirma.
O próximo ponto desta curva, segundo as previsões da WGSN, é um otimismo racional, que não se restringe a reconhecer a existência do problema nem descamba para a tal positividade tóxica.
“Já entendemos que temos que falar sobre emoções e que não precisamos estar bem o tempo todo. O próximo passo é falar sobre as micro-alegrias: curtir o momento e as coisas simples, como a imensidão do céu estrelado, a companhia dos melhores amigos, espaços com natureza”, diz Dufrayer.
Divulgação/Pixar
Ansiedade dominante
A incorporação da ansiedade aos memes, filmes, músicas, quadrinhos e outros produtos culturais — e a popularidade deles — tem um lastro na intensidade com que as pessoas vêm sendo afetadas por essa emoção na vida real. Caracterizada por uma tensão ou desconforto derivado da antecipação de um perigo, de algo desconhecido ou estranho, a ansiedade é uma reação natural do ser humano, que vem desempenhando um importante papel adaptativo e de sobrevivência. É ela que desencadeia a resposta de luta ou fuga diante de um predador.
De acordo com a OMS, a população brasileira é líder mundial em transtornos de ansiedade, com 9,3% de prevalência
Essa reação só é considerada doença quando ocorre de forma desproporcional, com muita frequência, intensidade ou duração. Síndrome do pânico, TAG (transtorno de ansiedade generalizada) e transtorno de estresse pós-traumático são exemplos dessas manifestações patológicas. De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), a população brasileira é líder mundial em transtornos de ansiedade, com 9,3% de prevalência.
“Mas a ansiedade também está presente nos outros 90% e de maneira cada vez mais intensa”, afirma o neurologista Leandro Teles, autor do livro “O Cérebro Ansioso” (Alaúde, 2018). Segundo ele, a ansiedade cotidiana também está mais forte na atualidade — ainda que os predadores hoje sejam outros. “Não temos tanto aquele inimigo natural, mas temos muita vigília, muita luz, muita coisa seduzindo nossa atenção e acelerando nosso cérebro. Estamos expostos a uma velocidade e a uma quantidade de informações que geram muito estresse. É quase impossível você perguntar a alguém se se sente ansioso e ele responder que não”, afirma.
Ele considera um acerto a forma como a Pixar representou a personagem — “impulsiva, atrapalhada, agitada, com a fala acelerada” — e também o fato de a história se passar no cérebro de uma adolescente — pesquisas mostram uma maior prevalência no sexo feminino e após a puberdade.
O neurologista acha importante que o assunto deixe de ser tabu, mas alerta para o problema do “diagnóstico de TikTok”. “Tem muita gente não qualificada falando disso. Quando colocam uma lista de sintomas, todo mundo vai preencher aquela checklist e achar que está doente. Se você banaliza, corre o risco de haver uma medicalização das sensações normais.” Ele estima que 70% de seus pacientes apresentem essa queixa. “Mas vejo uma enormidade de pessoas que acham que estão doentes e não estão”, afirma.
A psiquiatra Ana Carolina Corrêa também percebe o interesse pelo assunto, tanto em seu consultório quanto no podcast que apresenta, o Pragmática Psiquiatria. “O episódio mais ouvido é o do TAG [transtorno de ansiedade generalizada], e está longe de ser o melhor. A palavra ansiedade traduz um sentimento de identificação nas pessoas. Foi isso que fez o filme estourar”, diz.
Segundo a médica, mesmo quando não se torna um transtorno, a ansiedade excessiva domina a pessoa e impede a manifestação de outras emoções e sentimentos — como em “Divertida Mente 2”, no qual os outros personagens são relegados ao fundo da mente enquanto a Ansiedade comanda sozinha a sala de controle. Corrêa percebe essa desconexão em muitos pacientes. “A preocupação excessiva faz com que percamos um monte de sentimentos importantes: ficamos só no pensar, resolver, produzir, fazer. Quando desenhamos cenários tentando ter garantias, também perdemos potencial criativo. Estamos muito distantes do sentir e isso gera muito sofrimento”, diz.
Ilustração de Carol Ito, retirada do livro “Inteiro Pesa Mais do que Metade” (ed. nVersos)
A psiquiatra cita uma frase de Sigmund Freud que ajuda a explicar por que uma emoção como a ansiedade aparece com frequência na literatura, no cinema e em outras produções ficcionais: “Os poetas e filósofos descobriram o inconsciente antes de mim. O que eu descobri foi o método científico que nos permite estudar o inconsciente”, disse o pai da psicanálise, quando foi louvado como descobridor dessa parte da mente em uma cerimônia de homenagem por seus 70 anos. “Ou seja, antes da ciência, um poeta passou”, afirma Corrêa. “Estamos falando de emoções muito humanas e ansiedade é isso: muito humana.”
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