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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Chegou a hora de despir a camisa da empresa?

Mudanças no mercado de trabalho colocam em xeque antigos discursos corporativos, transformados numa exaltação do empreendedorismo

Leonardo Neiva 06 de Abril de 2025

Chegou a hora de despir a camisa da empresa?

Leonardo Neiva 06 de Abril de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Mudanças no mercado de trabalho colocam em xeque antigos discursos corporativos, transformados numa exaltação do empreendedorismo

“Andar de ônibus todo dia. Muita gente, chefe, pessoas mandando.” É dessa forma que uma adolescente de 12 anos traduz o que significa ser CLT. Sua mãe, a influencer Fabiana Sobrinho (@fabi.bubu), resume o que descobriu ao conversar com adolescentes colegas da filha sobre o tema, “todos eles com medo de ser CLT”: “Eles acham que CLT é pobre”, ela afirma num vídeo que viralizou no TikTok em janeiro.

O exemplo não é isolado. Ele acompanha uma tendência que inclui até o uso do termo CLT como apelido entre crianças, para diminuir o status social e financeiro do colega. Além de uma falta de compreensão sobre o que significa trabalhar de carteira assinada, esses casos também colocam em evidência um certo desprezo de parte das novas gerações pelo modelo que norteou a forma de trabalhar no Brasil ao menos até um período recente.

Em meio ao afrouxamento dos vínculos empregatícios, à pejotização e uberização do mercado, à ascensão do home office e de movimentos como o quiet quitting, a própria lógica do mercado de trabalho vem sendo colocada à prova — o que inclui velhos discursos corporativos como o chavão de “vestir a camisa da empresa”. Em outras palavras, assumir as metas e se comprometer profundamente com as ações e visões da companhia pela qual você trabalha. Mas será que devemos ficar de luto por perdas como essa?

Para começar, a doutora em psicologia social e organizacional Mônica Gurjão explica que a expressão nada mais é do que uma tentativa de criar uma sensação de pertencimento e engajar emocionalmente o trabalhador com aquilo que faz. “Estudos mostram que, quando a gente tem um envolvimento afetivo com o trabalho, isso nos torna mais produtivos”, aponta a psicóloga especializada em questões do mundo do trabalho. “A pergunta é: qual é a fronteira ética disso?”

A estratégia, lembra Gurjão, também encampa outras expressões que são velhas conhecidas de gestores e trabalhadores, como “estamos todos no mesmo barco” ou “aqui somos todos uma família”. Historicamente, a meta de todas elas, segundo a psicóloga, é captar a produtividade e extrair ainda mais trabalho — em muitos casos, configurando invasão de privacidade e até beirando o assédio.

O economista Cássio Calvete, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vai além e define o tal vestir a camisa como uma ameaça velada, especialmente quando o desemprego está em alta. “É vestir a camisa da empresa para não ser demitido, uma forma de coação do trabalhador, principalmente quando a empresa não veste a camisa dos funcionários.”

A juventude vem questionando muito essa vida só para o trabalho e exigindo melhores condições

Ele evoca um movimento como a Grande Demissão — tendência de funcionários se demitirem em massa, iniciada em 2021 nos EUA — para explicar por que o discurso funciona menos hoje do que no passado. A ascensão recente de fenômenos como o quiet quitting, em que o trabalhador decide fazer apenas o mínimo obrigatório de sua função, priorizando a vida pessoal e a saúde mental, também parece apontar nessa mesma direção.

“A juventude vem questionando muito essa vida só para o trabalho e exigindo melhores condições. Como hoje existe a possibilidade de conseguir outras ocupações nas plataformas digitais — mesmo não sendo a melhor ocupação do mundo —, diante da péssima condição do mercado formal, tem muita gente preferindo migrar”, afirma o economista.

Sobre o temor de crianças e adolescentes em relação à CLT, Gurjão lembra que muitas cresceram numa realidade em que os pais passaram uma vida inteira dedicados a trabalhos precários. “Acho que a juventude, principalmente a geração Z, tem percebido que esse prometido mercado de trabalho na verdade explora, não entrega dignidade humana e, muitas vezes, nem um salário que permita à pessoa ter lazer.”

O problema, segundo a psicóloga, é que o foco não deveria ser a carteira de trabalho, mas sim o modelo do mercado atual. Portanto, ela diz, essa mudança de pensamento acaba se alinhando à reforma trabalhista de 2017, que teria deteriorado o trabalho em regime CLT, favorecendo relações trabalhistas mais flexíveis, mas também mais incertas.

“Então por que eu vou me matar dentro de uma empresa por aquele patrão, se posso pegar minha bicicleta, vender alguma coisa ou ganhar dinheiro jogando online?”

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Dor de dono

Mas e quando a conexão com a empresa fica marcada não na camisa, mas na pele? Alguns anos atrás, um grupo de funcionários de uma clínica estética brasileira chegou ao extremo de tatuar no braço a meta de vendas da empresa. “Se eu vier a sair futuramente, vou ter com muito carinho isso no meu braço, com muito orgulho de ter participado dessa empresa”, afirmou na ocasião um dos integrantes desse projeto inusitado.

Esses trabalhadores ilustram de forma visual uma característica que Gurjão aponta sobre as mudanças do mercado contemporâneo: “Hoje as empresas não dão nem mais a camisa”, afirma. Afinal de contas, a ideia do traje costumava incluir ao menos um contrato firmado com a companhia, com todas as obrigações mas também os benefícios embutidos nisso. “Hoje grande parte do mercado é MEI, é PJ, mas ainda continuam querendo que você se identifique com isso e dando o seu máximo.”

Assim como acontece na natureza, também parece que na linguagem corporativa nada se perde, tudo se transforma. Nesse sentido, a tal ideia de vestir a camisa foi perdendo força ao longo do tempo para se transformar em expressões como a “dor de dono”, segundo Thatiana Cappellano, consultora de comunicação organizacional e especialista em psicanálise e ciências sociais. “Você direciona o empregado para uma atuação em que ele pensa na empresa antes de outras coisas”, explica.

Existe essa perspectiva de que, a partir do momento em que a pessoa é empreendedora de si mesma, ela é livre para fazer o que quiser. Mas como é que ela faz para discutir a proteção social e garantir o mínimo?

O discurso também está mais alinhado com a exaltação ao empreendedorismo individual, cada vez mais adotada pelo mercado e reforçada por tendências como a uberização e pejotização da força trabalhista. Dentro desse ponto de vista, cada um é o próprio patrão, assumindo ganhos e também responsabilidades. Mas no caso da expressão, há uma ressalva: se é preciso se colocar no lugar do dono para sentir como se o negócio também fosse seu, já fica implícito que o patrão de fato não é você.

“Algumas empresas usam o empreendedorismo como valor para os colaboradores, o que pode ser muito confuso para o empregado”, reflete Cappellano. “Quando você fala para a pessoa ter dor de dono, está querendo que ela pense com a cabeça de quem investe e tem lucro com aquele negócio. Só que a própria cultura da organização não permite atuar dessa forma.”

Calvete também aponta que, mesmo no caso de grandes empresas e aplicativos como Uber, que vendem essa mesma ideia de ser o patrão de si mesmo, a relação de subordinação está sempre lá, mesmo que oculta.

“Vai ter que acabar vestindo a camisa do Uber, porque senão não vai ganhar as melhores corridas. Mas você não percebe tanto, porque é diferente de ter um chefe físico em cima de ti, te controlando quando chega atrasado”, exemplifica o economista. “É uma subordinação disfarçada pelo algoritmo, porque a sociedade está dominada por esse discurso da meritocracia, do individualismo, do empreendedorismo.”

Por questões como essa, a pesquisadora e coordenadora do Comitê de Diversidade da Escola de Direito da FGV, Alessandra Benedito, questiona a noção de que só há liberdade fora da CLT. “Existe essa perspectiva de que, a partir do momento em que a pessoa é empreendedora de si mesma, ela é livre para fazer o que quiser. Mas como é que ela faz para discutir a proteção social e garantir o mínimo?”, questiona Benedito, que atua como consultora de inclusão e diversidade organizacional. “Então o que é liberdade? De que tipo de liberdade a gente está falando?”

Camisa pesada

Pesquisas apontam que o trabalho tem impactado a saúde mental do brasileiro mais do que em qualquer outro período recente da história. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, o número de afastamentos por episódios de depressão, ansiedade e estresse mais do que duplicou ao longo dos últimos dez anos, alcançando um recorde acima de 440 mil casos em 2024. Uma piora que tem acontecido de forma brusca. Afinal, houve um salto de 67% em relação ao ano anterior.

Cappellano visualiza três pontos que podem estar por trás de um aumento da insatisfação e adoecimento no mercado de trabalho tradicional. Um deles é a intensificação das jornadas, com uma redução geral das equipes e um consequente acúmulo de funções. O segundo é a precarização das relações trabalhistas, com a perda de vínculos e benefícios a partir da reforma. E o terceiro é o próprio modelo de trabalho, que não se sustenta mais da forma como o conhecemos.

“Ele ainda é baseado nessa hierarquia, em controle, processo, tudo que muitos trabalhadores não querem mais”, aponta a consultora. “As gerações mais novas, Y e Z, em breve vão chegar a 50% da força de trabalho. É uma galera que não tolera controle, rigidez, hierarquia. Então o modelo de trabalho precisa ser repensado, porque ele adoece e leva as pessoas ao limite.”

O modelo de trabalho precisa ser repensado, porque ele adoece e leva as pessoas ao limite

E são justamente os limites que vêm sendo reconsiderados, só que do lado do trabalhador, na visão de Mônica Gurjão. Para muita gente, após a pandemia, ficou claro que a realidade do trabalho contemporâneo implica “não poder descansar ou ter lazer, nem ficar com a família, e se sentir sempre exausta”, declara a psicóloga. E ela aponta que esses sacrifícios raramente vêm acompanhados de uma valorização pessoal e profissional. Não à toa, a camisa que você passa a vestir vai ficando cada vez mais pesada e desconfortável. “Para que eu vou vestir se ela está me sufocando?”

Mas Gurjão também lembra que é preciso pensar nessas questões a partir de recortes sociais. Fenômenos como o quiet quitting, a rejeição à CLT ou a possibilidade de se afastar do emprego por conta da saúde mental geralmente estão reservados a trabalhadores da classe média ou alta, enquanto conseguir um vínculo empregatício e estabilidade ainda segue sendo um sonho para boa parte da população.

“Tem pessoas que preferem a demissão do que ficar numa empresa que as adoece, mas quem é que hoje tem o privilégio de fazer isso? São tendências de um mercado de trabalho premium, em que aquela pessoa tem a oportunidade de fazer esse tipo de escolha”, esclarece a psicóloga.

O impacto do discurso

Embora haja essa conotação de demandas abusivas, Alessandra Benedito, da FGV, também enxerga um lado positivo de um discurso como o de vestir a camisa: “Se significar trabalhar com responsabilidade, para que haja evolução do negócio e também a sua como colaborador.” O importante, ela diz, é não extrapolar as fronteiras da vida pessoal.

Um dos problemas para essa conexão mais próxima entre trabalhador e empresa hoje é que muita gente tem não uma camisa, mas um armário repleto delas. Quando se trabalha como freelancer para vários lugares ao mesmo tempo ou se atua de forma temporária em diferentes empregos, fica difícil mesmo criar uma ligação especial com uma peça de roupa específica. Hoje em dia, até o home office torna mais complexa essa proximidade com o ambiente de trabalho. “A pessoa está ali tentando sobreviver, e obviamente vai ter uma energia, uma atenção e uma motivação divididas”, reforça Gurjão.

Esse discurso da produtividade começou a ser questionado. Isso vai abrindo uma fissura para que a gente possa promover mudanças reais e concretas

Cappellano considera que essa identificação pode ser importante, além de um processo poderoso especialmente para trabalhadores mais jovens. “Muitos querem trabalhar num lugar que faça diferença para o mundo. Então vão buscar empresas que tenham um discurso alinhado com isso”, aponta. Porém, uma pesquisa recente da Gallup mostra que esse engajamento está em queda livre desde a pandemia num país como os EUA. Atualmente, apenas 30% dos trabalhadores norte-americanos se sentem engajados com o propósito da empresa em que trabalham — o número mais baixo dos últimos dez anos.

“É impossível imaginar uma empresa que consegue entregar 100% disso, porque elas estão dentro de um sistema econômico cheio de falhas”, considera a consultora. “Então, talvez o que o empregado busca é um lugar do qual sinta um pouco mais de conforto em fazer parte.” Para Cappellano, é essencial continuarmos botando em xeque os discursos que integram o mundo do trabalho. “Acho que esse discurso da produtividade começou a ser questionado. Isso vai abrindo uma fissura para que a gente possa promover mudanças reais e concretas”, afirma.

Movimentos como a mobilização contra a escala 6 x 1 ou mesmo os protestos recentes de entregadores de aplicativos também evidenciam que expressões como vestir a camisa ou virar o próprio patrão estão longe de ser unanimidade. “Mostra que as pessoas estão cansadas, que as condições de trabalho estão muito ruins”, acrescenta Calvete.

Mas afinal, o trabalhador ganha ou perde com as profundas mudanças que estamos acompanhando na realidade do trabalho? Na visão de Alessandra Benedito, ainda não há resposta. A chave, para ela, é pensar o presente e o futuro sem deixar de lado os desafios de um modelo de trabalho do passado, que ainda segue ecoando hoje em dia.

“Tem um lado positivo: as pessoas precisam suportar menos coisas do que gerações anteriores para estar em um espaço de trabalho. Por outro lado, existe um aprofundamento desse processo de precarização, a ausência de proteção desses trabalhadores. Então não dá para fechar essa conta.”

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