Janela indiscreta - minicontos eróticos para a quarentena — Gama Revista
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©Javier Mayoral

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Ficção

Janela indiscreta

Em minicontos exclusivos para a Gama, Bianca Gonçalves, Santiago Nazarian, Isabela Figueiredo, Emilio Fraia e Amara Moira desvendam o sexo da quarentena

17 de Maio de 2020
©Javier Mayoral

Janela indiscreta

Em minicontos exclusivos para a Gama, Bianca Gonçalves, Santiago Nazarian, Isabela Figueiredo, Emilio Fraia e Amara Moira desvendam o sexo da quarentena

17 de Maio de 2020

O TOQUE É O NOVO SCAT

Duas da madrugada. Não tínhamos exatamente combinado a hora exata, mas sabíamos, pela intuição e instinto dos nossos corpos, que aquele era o momento para encararmos um ao outro. Ligamos as máquinas. Deitamo-nos com a cabeça apoiada, à meia-luz. Passou a ser costume não tirarmos mais a roupa. Temos uma suspeita compartilhada de que a ABIN, o FBI, o governo da China e da Rússia estejam vigiando nossas taras. E só por isso ficamos a noite inteira de meia.

Antes da quarentena, desperdiçávamos juntos momentos elucubrando sobre limites. Certa vez pensamos na escatologia sexual – scat, para a indústria pornô. “Gosto do cheiro do seu suor, lembra?”, “prefiro o da sua saliva”, “sabia que naquela dobra entre a sua bunda e o começo da coxa tem um cheiro muito específico?”, “nossa, hehe”.

Os silêncios que acompanham nossa acareação carinhosa não nos suscitam mais nenhuma discussão filosófica, mas ainda sabemos: “Escatologia” também é doutrina que projeta alguma possibilidade à revelia da queda de nossa existência. Pós-Fim-do-Mundo. Contudo, decidimos não perder mais nosso raro tempo com discussões que levassem letras maiúsculas. Queríamos coisas menores.

“Meu bem, do que você sente mais falta?”.

O aparelho notifica aquecimento. A pergunta trava. De repente, estamos todos deformados. A ideia de tomar um banho e sair para namorar nunca pareceu tão suja. O efeito glitch no vídeo insiste, sempre insiste.

E o toque passou a ser o maior scat que existe.


Bianca Gonçalves (São Paulo, 1992) é pesquisadora, professora, revisora e poeta. Publicou seu primeiro livro, “como se pesassem mil atlânticos” (Urutau, 2019). Mantém o blog “Bianca não é branca” com crônicas, ensaios e resenhas desde 2016.

CORPO ESTRANHO

“Tire os sapatos antes de entrar”, pedi ao abrir a porta. Entrando, ele já foi tirando as meias, a calça, camisa, cueca. Tinha o cheiro orgânico de animais que não se pode pedir por delivery. Toquei primeiro sua testa, de luvas. Como identificar quão quente deve ser o corpo do outro? Corpo estranho. Esperava que ele não notasse minha hesitação por trás da máscara, a falta de excitação dentro da calça. “Vamos ao banheiro?” Levei-o ao chuveiro. Ensaboei-o da cabeça aos pés. Esfreguei com a bucha. Me esforçava para que descesse pelo ralo qualquer traço da rua, da vida, de lá fora; me perguntava o que poderia se esconder entre seus pelos. Então o cobri de creme. Com navalha o raspei. Quando saímos do banheiro, não lhe restava nem sobrancelhas.

De pé ao lado da cama, peguei o frasco de álcool-gel na mesinha de cabeceira. Da cabeça aos pés. Agora ele cheirava familiar, como todo os outros, cheiro de homem, cheiro de álcool-gel, cheiro de homem 70%. “Deita aqui”, indiquei.

Ele se deitou no chão. Sobre a longa folha de plástico estendida. Comecei a envolvê-lo, embalá-lo, rolá-lo e enrolá-lo em plástico, fita adesiva.

Finalmente, com nenhuma camada de pele à mostra, me deitei entregue sobre meu homem-plástico-bolha. Cheirava a polietileno. E quando eu o abraçava, ouvia as bolhas estourando. Por dentro de minha calça, finalmente a ereção se pronunciava. Agora eu podia tirar a roupa.


Santiago Nazarian (São Paulo, 1977), tem uma dúzia de livros publicados como autor, entre eles “Neve Negra” (Companhia das Letras, 2017) e “BIOFOBIA” (Editora Record, 2014), e quase uma centena como tradutor.

A FALHA HUMANA

Não alimentem a esperança. Não há heróis. Não valemos nada. A vida é um saco de histórias vulgares e ridículas.

Eu não gostava dele. Antes de termos começado a trabalhar à distância, eu sempre dissera, na redação, a quem quisesse ouvir, que o Miguel tinha um transtorno narcisista de personalidade, o que explicava a forma sobranceira como tentava dominar-nos. Nas reuniões, o seu sorriso nunca abria. No entanto, os olhos, quando não fugia com o olhar, não mostravam malevolência, mas insegurança. Devia ser uma fragilidade que vinha da infância. A mãe não o tinha acarinhado. O pai era violento.

Nunca receei que a minha opinião pudesse chegar aos seus ouvidos. Contava com isso. Há denunciantes gratuitos a cada esquina. Devemos usar os seus serviços em nosso favor. Temos alguma saída a não ser chafurdar na falha humana para a conhecer e aprender como sair ilesos?

Entre nós mantinha-se um silêncio não isento de significado. Eu não tinha medo dele: ele não me fazia frente. Ele tinha muito ego: eu também.

Mas veio o Coronazinho, que nos enfiou em casa, local a partir do qual trabalhamos há oito meses. Na nossa profissão, trabalhar implica estar sentado frente ao computador. A redação realiza duas reuniões semanais, por videoconferência. Nessas alturas, vejo Miguel sentado numa poltrona negra, com fundo de parede branca não decorada. Ele, bem visível. O corpo todo. Não há mais nada para ver na sua janelinha. Levanta-se a cada quarto de hora. Sai do campo de visão e regressa rapidamente. Vai beber refresco?

É muito tentador vistoriar os outros quando não estamos na sua presença. Não sabem que estão a ser olhados. Podemos examiná-los meticulosamente. Reparo que usa roupa básica para trabalhar on line. No seu caso, apenas camiseta curta sobre calça jeans de cintura baixa. Quando se levanta, a visão da sua pélvis morena traçada por pelos curtos subindo do púbis, inunda completamente o quadrado de ecrã. Os momentos altos da minha reunião são esses em que posso contemplar cinco centímetros de baixo ventre que a roupa não esconde, a barriguinha de pele húmida, atravessada por veias salientes cujo destino desejo seguir.

Não sei se o Miguel é casado nem onde fica a sua residência, mas quando a reunião termina, desligo o aplicativo e imagino-me percorrendo o seu bairro e tocando a campainha de sua casa. Ele abre. Entro. Fita-me com os olhos inseguros da infância. Digo, “eu sei que é frágil, não precisa falar”. Encosto-o à parede com o impulso do meu corpo e espalmo as mãos na pele da sua barriga, por debaixo da camiseta. Escalda. O seu coração bate ali.. Enfio a mão direita por dentro dos seus jeans e sussurro, “diga-me que também deseja que o trabalho em casa não tenha vindo para ficar.”


Isabela Figueiredo (Maputo, 1963) é jornalista, professora e escritora portuguesa. É autora de, entre outros, “A Gorda” (Todavia, 2017).

ZOOM

Mas minha cena preferida é uma cena de sexo em que o sexo não existe. Está num conto do Tchékhov. É quando o Gurov seduz a Ana. Eles vão para a casa dela, e entram no quarto, e em vez de narrar o que acontece na cama, o Tchékhov leva a gente pra dentro da cabeça do Gurov, e ele passa a lembrar, e a fazer uma lista, de uma série de outras mulheres com quem saiu e trepou. O Tchékhov narra a cena desse jeito, trocando o sexo por essa lista de fodas. Depois, a Ana, que é casada, fica sentada na cama, pensativa, desolada, como a pecadora de uma tela antiga, é assim que o Tchékhov descreve ela. O Gurov vai então até uma mesa no canto do quarto, onde tem uma melancia — sim, uma melancia. Ele corta um pedaço e começa a comer a melancia. Passa mais de uma hora nisso. Juro. Pelado, que é como eu imagino ele, olhando pra Ana, cada um do seu lado, sem dizer nada, ela quieta olhando pra ele, ele do lado de cá, olhando pra ela, mexendo no pau, mastigando a melancia.


Emilio Fraia (São Paulo, 1982) é escritor, autor de “Sebastopol” (Alfaguara, 2018).

CONFINADAS

– Esse picu tá uó, mona. Tem nem um salãozinho aberto aqui perto, eu tendo que fazer cam assim, pode?

– Mulher, eles tão nem aí pra picu não. As conas o que tão atrás é dessa jebona que a senhora tem que eu sei, aí só gilete já dá o truque.

– Que jebona, mulher, tá doida, é?

– Essa mala que fica aí é o quê, neca ou tu não sabe aquendar?

– Não sabe aquendar, ôxi… a senhora tá abusada, ein? Vou te mostrar a gilete na sua cara. Cê tava no ovo do teu pai e eu já trucando belississíssima. Aqui é xoxota, meu bem, xoxota, fio dental. Bem menininha. Até queria uma neca maiorzinha, pra bater porta era bem. Mas tá morta de tudo a coitada.

– Docinho de jiló!

– Cabei de fazer um na cam, trinta arô. Uma hora socando o cu no consolo e a maricona nada. Tava só vendo vencer o cheque, a lambrequeira que ia fazer no banheiro. E eu ia falar “goza, agora goza, viado”. Não pediu bate-estaca, uma hora? Não fez questão?

– Ah não, cam é uó demais, não aguento mais ficar batendo bolo pra essas penosas malditas. Tem graça não. Mona do céu, te juro que o que eu mais queria era aquendar um bofe, mesmo que fosse passiva. Ela lá linda de quatro rebolando o edizão peludo e eu fina fazendo.

– Catei, tá na intenção, é? E se viesse uma cacura bem larga?

– Tá se oferecendo? Se for…

– Eu ein, podre!

– Não chega a ser uma manjuba, mas é grandinha.

– Tou bege com a senhora! É colocação isso? Cortou o padê, mona, parô.

– Já vai pra dois meses trancadas só nós duas aqui, sei lá.

– A loca! Tá me xoxando, só pode.

– Devo tá doida, esquece.

– Não, calma… se for mesmo sério, não sei…


Amara Moira (Campinas, 1985) é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp (com tese sobre o”Ulysses”, de James Joyce) e autora do livro autobiográfico”E se eu Fosse Puta” (hoo editora, 2016).