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RepertórioO desafio da saúde mental dos atletas
De Gabriel Medina a Simone Biles, estrelas do esporte passaram a tornar públicos problemas psicológicos e buscar ajuda. Especialistas veem mudança de paradigma
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O desafio da saúde mental dos atletas
De Gabriel Medina a Simone Biles, estrelas do esporte passaram a tornar públicos problemas psicológicos e buscar ajuda. Especialistas veem mudança de paradigma
“Cheguei ao meu limite”, escreveu o tricampeão mundial Gabriel Medina ao anunciar, no final de janeiro, ter desistido de competir em mais um Circuito Mundial de Surfe, no Havaí, para cuidar da saúde física e mental. Medina foi mais um dos atletas de alto rendimento a optar por tornar públicos seus problemas psicológicos – relacionados ou não ao esporte. No ano passado, o surfista havia rompido com a mãe e o pai adotivo, que era seu técnico. Após o anúncio, também rompeu com a modelo Yasmin Brunet, com quem tinha uma relação desde 2020.
Medina se junta a outras estrelas do esporte, como a tenista Naomi Osaka e a ginasta Simone Biles, que nos últimos anos também desistiram de competições após manifestarem lidar com problemas como ansiedade e depressão. “A saúde mental é mais importante nos esportes nesse momento. Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos”, disse Biles ao se retirar no meio da competição nas Olimpíadas de Tóquio, em que era apontada como a maior estrela.
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No Brasil, revelações do vôlei como Drussyla Costa e Gabi Cândido também anunciaram pausas nas carreiras para tratar, respectivamente, de depressão e síndrome do pânico. Problemas de saúde mental sempre fizeram parte da rotina de muitos atletas, acostumados desde cedo a lidar com treinos que desafiam os limites do corpo (e as muitas lesões) e a pressão por vitórias e títulos. A diferença, agora, é que muitos não estão mais dispostos a tratar do assunto só no privado – ou recorrer ao álcool e outras substâncias para atenuar seus efeitos.
“Até pouco tempo, o atleta era mais tratado como uma máquina, um corpo que vai lá e desempenha”, explica a psicóloga do esporte Aline Wolff, responsável pela preparação da ginasta Rebeca Andrade, que impressionou muita gente com a aparente serenidade ao conquistar duas medalhas em Tóquio. Wolff, que também é coordenadora de preparação mental do Comitê Olímpico Brasileiro, defende o que chama de performance sustentável, em que o atleta consiga atingir o alto rendimento “sem se quebrar”.
Gama conversou com ela e com o também psicólogo do esporte e professor Eduardo Cillo para entender qual é essa linha entre se desafiar e manter a sanidade física e mental. “Precisamos entender que mesmo pessoas capazes de grandes feitos têm seus limites”, diz Cillo, que acredita que estamos vivendo uma mudança lenta, mas sem retorno, na maneira como vemos nossos atletas, com resultados “mais efetivos e saudáveis”.
“Cuidar da saúde mental deixa o esporte mais seguro”
Aline Wolff, psicóloga, palestrante e escritora, responsável pela preparação da ginasta Rebeca Andrade e coordenadora de preparação mental do Comitê Olímpico Brasileiro (COB)
Arquivo pessoal
Por que atletas como Gabriel Medina e Simone Biles passaram a expor problemas de saúde mental e buscar ajuda?
Todas as dificuldades de saúde mental sempre existiram. Mas sempre teve um estigma muito pesado. Esses atletas, que são gigantes nas suas modalidades e dão voz a essas dificuldades, abrem espaço para que outros consigam também ver que é ok pedir ajuda. A gente está numa mudança de paradigma. Há pouco tempo, o atleta era mais tratado como uma máquina, um corpo que vai lá e desempenha. Está acontecendo um processo de humanização. Os atletas estão investindo no seu autoconhecimento, no entendimento de que, assim como o corpo, a mente também pode dar os seus defeitos. A partir disso, têm acesso a um serviço adequado, feito por profissionais de saúde mental, para que esse atleta se reabilite, se entenda e cresça com isso.
Como esses problemas eram tratados antes?
Durante muito tempo, muita gente entendeu que ter depressão, crise de pânico ou um transtorno alimentar era incompatível com ser atleta. Hoje se sabe que não é impeditivo de nada. O grande exemplo é o [nadador] Michael Phelps, que é um multimedalhista e que tem como um dos negócios pós-carreira um serviço de saúde mental. Ele sofreu muito com depressão, ideação suicida e mesmo assim foi tudo o que ele foi.
Essa mudança está acontecendo também dentro das equipes?
Cada modalidade resguarda suas características culturais e tem um determinado timing. Mas acho que esse é um caminho sem volta. Abriu-se consciência e isso facilita o desempenho, o ambiente esportivo. Cuidar da saúde mental deixa o esporte mais seguro, mais promotor da saúde geral, mais agradável para todos. Isso tem a ver com esse papel social do esporte também na vida das pessoas. Algumas modalidades talvez ainda não tenham atingido [essa consciência], mas é uma questão de tempo.
Atletas da ginástica artística começam ainda crianças e se tornam, muitas vezes, a esperança de mobilidade social de suas famílias. Como isso os impacta?
Sempre que a gente está à frente de uma realidade como essa, de uma criança em desenvolvimento e que algumas vezes faz muito cedo esse papel de arrimo de família, a gente precisa considerar isso no acompanhamento: que tipo de suporte a criança precisa, a estruturação interna para que aquilo não se torne um peso. É uma oportunidade de mobilidade social importante, tanto para o atleta quanto para a família que vem junto. Não cabe a nós julgar como algo ruim. Precisamos é cuidar daquele indivíduo para que tenha suas necessidades atendidas e se desenvolva com sua saúde mental preservada, para que o desempenho saia naturalmente. É um trabalho holístico, em que a família tem que entrar no radar.
Você disse numa entrevista que o modelo de “sangue, suor e lágrimas” para o esporte de alto rendimento está em desuso. Por que?
Não tem como um atleta de alto rendimento quebrar recordes, fazer história sem toda essa intensidade, essa entrega, esse suor. Mas isso não precisa gerar sangue e lágrimas. Um conceito que uso muito, em que realmente acredito, é o da performance sustentável. Se um indivíduo passa a todo dia se matar, ele vai conseguir resultado. Mas uma vez, porque tem um custo muito alto. E isso acontece na história muitas vezes: medalhistas deprimidos, sem ver sentido, tendo sensação de alívio ao conseguir uma medalha. Qual o propósito disso? A grande questão é como atingir a alta performance sem moer a carne. Isso é uma mudança de paradigma na própria psicologia do esporte. Os profissionais estão buscando esse meio do caminho que torna a performance mais sustentável. E aí o indivíduo tende a repetir suas vitórias porque está bem, inteiro, não precisou se quebrar para conseguir um resultado.
Você preparou a Rebeca Andrade por 9 anos. Esse é necessariamente um trabalho de longo prazo?
O que dá resultado é uma consistência ao longo do tempo. O número varia de um indivíduo para outro. Mas é um trabalho profundo, de autoconhecimento, não é aplicar algumas estratégias e técnicas. Não tem como pensar que vai ser rapidinho, cinco sessões. No caso da Rebeca, comecei com ela aos 13 anos, são ciclos de desenvolvimento. Um indivíduo adulto pode atingir em menos tempo essa profundidade. As pessoas adoram comprar uma pílula mágica, um curso que vai transformar suas vidas em 72 horas. Isso não funciona, não tem fast-food.
A exposição nas redes sociais mais ajuda ou atrapalha os atletas?
Não é binário, depende da estrutura do atleta, do uso que ele faz daquilo. As redes são uma via de comunicação cada vez mais forte, não vão sumir. É importante que os indivíduos aprendam a se relacionar com isso – e isso não vale só pros atletas. Elas têm um poder de adição, muita gente vive em função daquilo. Isso entra no nosso rol de preocupações e de cuidado. É preciso orientação para que o indivíduo tire o melhor proveito possível. As redes ajudam os atletas a conquistar patrocínio e visibilidade, e isso é muito importante.
“Precisamos entender que mesmo pessoas capazes de grandes feitos têm seus limites”
Eduardo Cillo, doutor em psicologia experimental pela USP, professor de psicologia na Universidade Mackenzie, atuou como psicólogo de atletas de futsal, automobilismo, basquete, triatlo, rúgby e snowboard
Arquivo pessoal
A maneira como se vê a saúde mental no esporte profissional está mudando?
Penso que essa mudança está começando. A pandemia e as suas consequências acabaram dando um empurrãozinho. Os atletas de alta performance, que estão acostumados a viajar, competir, tiveram que lidar com uma realidade bem diferente e isso fez aflorar questões emocionais. E tudo que aconteceu no ano passado, nos Jogos Olímpicos, foi um impulso maior. As ações da Naomi Osaka no tênis e da Simone Biles em Tóquio foram muito fortes e despertaram a sociedade para pensar a saúde mental desses que são nossos heróis.
Está diminuindo o estigma?
O futebol ainda é um nicho bastante conservador nesse sentido. Ainda existe, mas a mudança está em curso. Como toda mudança cultural importante, não acontece da noite pro dia. Falta bastante ainda para a gente entender que mesmo pessoas capazes de grandes feitos têm seus limites. Precisam aprender a conhecê-los, respeitá-los e assim poder ser até mais efetivos, mais saudáveis.
Como se costumava lidar com esses problemas?
Num contexto no qual admitir fraqueza e fragilidade tem uma grande chance de ser punido, o caminho mais comum é guardar pra si e usar o que se tem em mão. Infelizmente, no esporte, a incidência de transtornos mentais em atletas de alta performance é um problema – incluindo o uso de substâncias lícitas ou ilícitas que acabam funcionando como um amortecimento para o desgaste emocional. Os índices de alcoolismo entre jogadores são assustadores. Mas, aos poucos, conforme os atletas vão conhecendo profissionais capacitados que conseguem ajudá-los a lidar com a pressão, dificuldades emocionais, a gente vai no caminho de disseminar a psicologia do esporte e outras áreas, como a psiquiatria, como apoios mais adequados.
Como é possível equilibrar a carga emocional e física de atletas que começam muito cedo?
Aí temos um problema bastante sério. São crianças que muitas vezes precisam mudar de cidade, ficar longe da família, amadurecer muito rapidamente, fazer escolhas que nem sempre estão prontos para fazer. Isso não só com relação à prática esportiva, mas ao processo educacional, que por vezes é negligenciado. É uma realidade que você encontra nos centros de treinamento Brasil afora. Isso sem falar que são jovens que estão dando o sangue por uma oportunidade no esporte profissional, mas a maioria não vai conseguir chegar lá por conta do funil. O ideal é que exista um trabalho interno dos clubes, capacitar os demais profissionais, uma mudança de cultura. Nos clubes de futebol, temos carência de profissionais. Às vezes você tem um para cinco, seis categorias.
Dá para se desafiar física e mentalmente respeitando os próprios limites?
Você precisa tentar acompanhar [o atleta] da forma mais individualizada possível. Isso é um problema quando você tem um número pequeno de profissionais. Não tem como saber o que está acontecendo com um individuo se não estiver prestando atenção no processo dele. Parte do processo de treinamento é administrar cargas cada vez maiores dentro de uma lógica que seja produtiva. Numa realidade em que o esporte brasileiro ainda é muito carente de investimento, difícil ter esses controles. A gente acaba vendo lesões que são típicas de atletas adultos em crianças e adolescentes. Claramente houve abuso de carga porque não se pôde monitorar. É muito difícil separar o estímulo físico do mental. O organismo é um só. Os efeitos desses estímulos a gente vai ver: pode aparecer num músculo rompido ou num quadro de burnout. E aí pode ser muito tarde.
A popularidade de grande atletas fora das competições preocupa?
É um ponto de atenção por diversos motivos. É importante fazer uma educação com relação às redes. Tem uma hora que precisa se desligar porque senão aquilo consome não só o tempo de descanso, mas traz estresse, ansiedade. É preciso soltar o celular para dar uma desacelerada. Mas não dá para demonizar também. A rede social é um veículo importante de divulgação, inclusive para a captação de patrocínio. Tem um momento na série do Neymar [“O Caos Perfeito”, na Netflix] que o pai diz que ele ele ganhava quatro vezes mais em propaganda que no futebol. Vi atletas que estavam indo a Tóquio perdendo dinheiro. É preciso pensar qual é o foco. Você quer ser um influencer ou um atleta? Se não limitar as lives, vai ter gente com [câmera] GoPro dentro do jogo para contentar o patrocinador.
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