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Arquivo pessoal/Beatriz Goulart

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Depoimento

Beatriz Goulart e Maurício Kubrusly: aprendizados de amar alguém com demência

Beatriz Goulart fala das transformações da vida ao lado do marido, Maurício Kubrusly, diagnosticado com demência frontotemporal em 2023

Depoimento a Sarah Kelly 23 de Março de 2025

Beatriz Goulart e Maurício Kubrusly: aprendizados de amar alguém com demência

Depoimento a Sarah Kelly 23 de Março de 2025
Arquivo pessoal/Beatriz Goulart

Beatriz Goulart fala das transformações da vida ao lado do marido, Maurício Kubrusly, diagnosticado com demência frontotemporal em 2023

Arquiteta, pesquisadora e ativista, Beatriz Goulart dedicou parte da vida a estudar a utilidade e as similaridades entre escolas e cidades — envolvida em projetos como os CEUs, em São Paulo. Em 2002, conheceu Maurício Kubrusly, o jornalista e crítico musical que desbravou o país no quadro “Me Leva, Brasil”, um marco do programa Fantástico, da Globo. Ambos com uma visão de mundo ancorada na curiosidade e no encantamento pelo presente, os dois passaram a viver um romance regado à arte.

“Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí” é o nome do documentário lançado há poucos meses pelo Globoplay que relembra a trajetória do jornalista e mostra sua nova rotina, hoje convivendo com a demência. Com carinho, Goulart diz no filme que olha para o marido pensando nas possibilidades e não nas faltas dele, numa reflexão que aprofunda em depoimento que concedeu a Gama, que você lê a seguir.

“Acho que foi em 2017 que a geriatra de Maurício anunciou que ele estava com início de Alzheimer [diagnóstico inicial do jornalista, revisado para demência frontotemporal em 2023]. Não sei explicar o porquê, mas recebemos a notícia com tranquilidade. Desde 2002, temos uma vida intensamente partilhada, numa intimidade profundamente tranquila e quase secreta, que quase ninguém de nosso convívio pode imaginar. Música, literatura e derivas pela cidade, pelas ruas ou pelas salas de cinema e espetáculos ocupavam nossa vida em comum. A arte salva. E ela nos salvou do desespero diante dessa notícia.

O que foi mais difícil de adaptar na minha vida foi aprender a estar presente e inteira. Virei budista na marra. Não tinha outro caminho. Ou seja: mudanças radicais na minha agenda e no ritmo de vida. Lamentações e expectativas não faziam mais sentido. Isso impactou profundamente minha vida profissional, que a cada dia se integra mais com a vida pessoal. Aos 63 anos (nono setenio) finalmente integrei esses campos que se aprimoraram mutuamente. Hoje não construo mais escolas, mas cuido da saúde das ambiências educadoras [espaços físicos e simbólicos que influenciam a aprendizagem e o desenvolvimento] junto com quem as habita.

Isso foi bem complexo e até hoje ainda estou me aprimorando. Quanto mais a demência de Maurício avança, mais vou desviando do que não faz mais sentido. Todos os dias, desde que nos conhecemos, ele me presenteia com a pergunta: ‘Você está feliz?’.

Nos primeiros anos, ainda morando em São Paulo, era bem mais difícil.

Em São Paulo, tudo era mais neurótico, eu inclusive. Aqui, onde vivemos atualmente, numa vila beira-mar na Bahia, cercada de mata com 8 mil habitantes, está bem mais fácil e prazeroso. A despeito de nós, o sol nasce todos os dias e dar conta disso ajuda muito. É menos sobre eu e ele e mais sobre a humanidade e o planeta que habitamos. Ainda assim, graças à minha família e amigos queridos, me dei conta de que precisava de ajuda. Pois não tinha percebido, e eles perceberam, que, há alguns anos, eu não dormia mais que duas horas por noite. Apesar de me achar o máximo, isso obviamente quase me fez pifar mental e fisicamente. Então descobri, há alguns anos, que o convênio médico poderia arcar com uma equipe 24 horas de cuidadores. E desde que temos a presença deles em nossas vidas, muita coisa melhorou.

Mas gostaria de relatar a dificuldade de encontrar um home care adequado para o nosso modo de vida. Minha gente, não estamos preparados para o cuidado, em todas as faixas etárias. Nossos parâmetros de cuidado são fundamentados em tudo menos no amor, na presença, no acolhimento, no afeto.

Nossos parâmetros de cuidado são fundamentados em tudo menos no amor, na presença, no acolhimento, no afeto

Então decidi montar um piloto de cuidado aqui na vila, convidando um jovem competente e dedicado fisioterapeuta para vir comigo. Há alguns meses estamos nessa aventura, num trabalho intenso com esperança de melhorar a estrutura local de cuidado com os idosos, dementes ou não. [o projeto testa um modelo de home care preocupado com a empatia, que será implementado em uma nova escola de cuidadores na região]

No caso específico da demência, não é só a área da saúde que ainda engatinha, mas as famílias, ou seja, nós seres humanos estamos perdidos com relação à demência. Dasha Kiper, conselheira de cuidadores russa que vive em Nova York, escreveu “Viagens a Terras Inimagináveis” [leia aqui entrevista que Dasha Kiper concedeu a Gama], em que descreve os mecanismos da mente no caso dos dementes e de seus cuidadores, familiares ou não. A escritora e psicóloga nos ilumina com o conceito de cegueira diante da demência, expondo nossas neuroses e preconceitos em relação a essa situação. Ela nos ensina que em muitos casos a coisa certa é a errada.

Sem esquecer que estamos na Bahia. Quanta sabedoria este povo baiano no modo de levar a vida!

Para uma paulistana da gema, não foi fácil entender que ninguém avisa que vem na tua casa e nem toca a campainha, mas vai entrando. Primeiro me irritava muito me sentindo invadida, e depois me alegrei muito por me sentir invadida (risos).

Sobre o documentário “Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí” e sobre ele saber apenas meu nome: ‘Acordo todos os dias para a eterna novidade do mundo. É difícil dizer o quanto isso me alegra, o quanto isso me basta’ (Alberto Caeiro).

Ele reconhece as pessoas queridas além de mim. Apenas não sabe o nome. É tudo instantâneo para ele. Antes de conhecê-lo, eu já vivia muito esse poema de Alberto Caeiro. E quando o conheci nos identificamos nisso. Ele sempre viveu assim. E a demência radicalizou isso. Apesar de ele ser ateu declarado, acho que é um budista na essência. Sem passado e sem futuro.

Estou tentando acompanhá-lo. E os amigos queridos também, quer estejam perto ou longe de nós. Especialmente quem tem a coragem de olhar para o que ele é hoje e não os que ficam lembrando quem ele não é mais.

Arquivo pessoal/Beatriz Goulart

Mas como ‘mistérios sempre há de pintar por aí’, ele ainda é o mesmo de sempre. Continua ouvindo música e quer música boa, de preferência pulando da vanguarda instrumental para a vanguarda paulista, entremeadas por Caju & Castanha, Jessier Quirino ou Chico César. Delira efusivamente por todos eles assim como ao assistir vídeos do Grupo Corpo, da Pina Bausch ou do Gordo e o Magro.

O que me sustenta – e ao que me apego – é a possibilidade de encorajar as pessoas que passam por algo parecido. Ou todos nós, imersos neste mistério que é estar vivo, especialmente em um momento tão desafiador para o planeta.

Diante da quase falência do modo de vida que inventamos, lembro que, assim como mistérios sempre há de pintar por aí, também há esperança. Para cada notícia ruim e desesperadora – como Gaza, Trump e outras tragédias –, temos muitas notícias boas como Nego Bispo, Krenak ou Eliane Brum.

Adoro e repito sem cansar essa frase pixada num muro na Rio 92: ou a gente se RAONI ou a gente se STING.

Bora nos ‘raonir’. Sozinhos não vai dar pé.”

Um assunto a cada sete dias