Fãs brasileiros viralizam no mundo: admiração e temor nas redes — Gama Revista
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Reportagem

Os gringos descobrem a avalanche dos fãs brasileiros

Evidente na campanha de “Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres ao Oscar, comportamento dos fãs brasileiros nas redes é admirado e temido na mesma medida

Leonardo Neiva 16 de Março de 2025

Os gringos descobrem a avalanche dos fãs brasileiros

Leonardo Neiva 16 de Março de 2025
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Evidente na campanha de “Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres ao Oscar, comportamento dos fãs brasileiros nas redes é admirado e temido na mesma medida

Pouco após a cerimônia do Oscar, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas decidiu bloquear para usuários fora dos Estados Unidos uma série de posts em seu Instagram. Entre eles, o relevante anúncio de melhor atriz para Mikey Madison, por “Anora” (2024). Mesmo sem nenhum pronunciamento oficial, brasileiros logo chegaram à conclusão de que a instituição estava com medo das reações de usuários daqui à derrota de Fernanda Torres.

Embora a medida soe excessiva, é impossível dizer que não demos motivos para ela. Se houve uma presença constante ao longo da temporada de premiações de cinema, foi a do brasileiro. Além de enchermos com centenas de milhares de likes e comentários qualquer post contendo Fernanda Torres e o filme “Ainda Estou Aqui” (2024), fizemos questão de apontar nosso arsenal nas redes contra os principais rivais nesse ringue — em especial “Emilia Pérez” (2024), inicialmente o grande favorito ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Aianne Amado, doutoranda em comunicação pela USP e pesquisadora de fãs e cultura digital, defende que o brasileiro já vem com uma paixão extra de fábrica. “Não é quantificável, então não tem como provar cientificamente, mas é algo tangível, a gente percebe que tem esse fogo a mais”, considera. Um exemplo clássico, cita Amado, são os constantes elogios de músicos internacionais que se apresentam por aqui, não raro chamando as hordas de brasileiros de melhor público do mundo.

Esse engajamento e animosidade da torcida brasileira nas redes também reflete uma intensa organização dos fãs nacionais. “Como a gente é muito organizado, tem essa capacidade de demonstrar mais”, resume a pesquisadora.

Toda essa animação, no entanto, também acaba levando a alguns excessos. Antes de ter sua imagem abalada pela revelação de tweets preconceituosos, a atriz Karla Sofia Gascón, de “Emilia Pérez”, chegou a reclamar em entrevista sobre o assédio brasileiro, atribuindo-o à equipe de Fernanda Torres. “Vejo muitas pessoas que trabalham no ambiente de Fernanda Torres que falam mal de mim e de ‘Emilia Pérez'”, disse em entrevista à Folha.

Um caso evidente foi a reação à vitória de Madison numa disputa que tinha Demi Moore e a própria Torres com chances de prêmio. “Ninguém vai lembrar”, “atuação medíocre” e “vergonha” foram algumas das qualificações mais tranquilas direcionadas à atriz de apenas 25 anos. Mas muitos usuários pesaram a mão ao comentar a aparência da atriz, diminuindo sua performance pelo fato de ter interpretado uma prostituta. Por sorte, provavelmente Madison não chegou a ler nada disso, já que não tem Instagram nem nenhuma outra rede social.

A descoberta do Brasil

O brasileiro hoje ainda é mais lover do que hater, na opinião da professora da pós-graduação em comunicação da Unip Clarice Greco, especialista em estudos de fãs e cultura pop. “Mas a visão que se tem lá fora é que a gente não tem limites. E talvez não tenha mesmo”, reflete a acadêmica. Greco também destaca as ideias, o humor e os memes — dos quais Torres é uma ardorosa admiradora —, que podem colocar os fãs brasileiros sob uma luz positiva no contexto global. “Faz com que a gente tenha uma visão de criatividade e de que somos muito felizes.”

A psicóloga Andréa Jotta, especialista em ciberpsicologia, considera que sermos um dos poucos países que falam português nos dá um certo salvo-conduto para agir livremente nas redes — afinal, quase ninguém nos entende. Além disso, a falta de conhecimento sobre a nossa cultura lá fora acaba tornando as interações, geralmente cheias de memes e piadas internas, exóticas aos olhos estrangeiros.

O estudo “A Era dos Fandoms”, realizado numa parceria da agência Monks com a float, aponta que 71% dos fãs brasileiros acreditam ser os mais dedicados da internet. Além de estarem com a autoestima em dia, eles também encontram respaldo nas ações de muitos artistas estrangeiros, que sentem até uma certa pressão para nos agradar e fazer shows por aqui, diz Fabiano Carvalho, diretor de pesquisa e insights culturais da Monks.

Carvalho aponta, no entanto, que o ódio por parte de um fã pode ser tão potente quanto o amor, como ilustram algum dos casos citados. Ao menos é isso que afirmam 64% dos entrevistados na pesquisa. E esse está longe de ser um fenômeno novo em relação aos brasileiros. Lá em 2017, o ator norte-americano Cole Sprouse classificou “ofender brasileiros” no topo do seu ranking de maneiras de destruir a carreira — pior até do que ferir um cachorro ou destilar qualquer tipo de preconceito.

O ator Cole Sprouse, de “Riverdade” e “Zack & Cody”, compartilha uma sabedoria milenar: não mexa com os brasileiros  Reprodução/X

“Mobilizações humanas podem ser muito proveitosas em prol de um bem, mas também de um mal maior. São reproduções de comportamentos de massa como os de uma torcida organizada, que apoia sua equipe mas também cai na briga”, dá como exemplo Quentin Mahé, diretor de estratégia e conexões da Monks.

“A cultura do mundo vem muito da Europa e dos EUA, dois países que, de certa forma, ignoram a nossa existência”, aponta Jotta. Na opinião da especialista, em algum momento o brasileiro percebeu que as redes sociais abriam portas que estiveram fechadas para nós por mais de 500 anos. Por mais que o mundo não entenda, os algoritmos entendem, reverberam e passam para frente.”

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O quintal do vizinho

Se você nunca assistiu a um daqueles vídeos em que gringos dão uma avaliação sincera sobre coxinha, brigadeiro e outros quitutes nacionais, talvez deva pensar em devolver sua identidade brasileira. Os milhões de views que cenas do tipo geram no YouTube fizeram com que esse tipo de conteúdo se proliferasse na rede, com o Brasil como alvo acima de qualquer outro país.

Essa é apenas uma pequena ponta do iceberg que representa a euforia nacional de perceber que algo nosso está fazendo sucesso lá fora. Aconteceu com Rodrigo Santoro, o funk de Anitta, Wagner Moura e agora “Ainda Estou Aqui”. A própria Fernanda Torres buscou definir esse sentimento: “Nós somos cegos para a nossa própria cultura, mas ao mesmo tempo queremos que o mundo veja o que está perdendo.”

Segundo os especialistas consultados por Gama, esse é um fenômeno que perpassa a cultura de fandoms do Brasil. “É um processo que faz parte da nossa construção histórica desde a colônia, porque a gente tende a valorizar muito o que vem das economias mais desenvolvidas”, avalia Amado, cuja pesquisa é focada na relação dos fãs daqui com produtos e artistas internacionais, e com nossa própria identidade cultural.

Nós somos cegos para a nossa própria cultura, mas ao mesmo tempo queremos que o mundo veja o que está perdendo

A pesquisadora, porém, evita usar o termo “complexo de vira-lata” para definir essa preferência. Segundo ela, o fato é que simplesmente consideramos superior a cultura de países desenvolvidos. “A gente quer imitar essas culturas, trazê-las para perto, como uma forma de nós mesmos nos sentirmos superiores”, explica. Por isso, quando públicos estrangeiros elogiam algo que fizemos, isso também parece nos dar uma validação, legitimar a nossa cultura e identidade.

Mas nem por isso os fandoms brasileiros aceitam calados tudo que vem de fora, especialmente desaforos. Quando o ator Tyler James Williams — o Chris de “Todo Mundo Odeia o Chris” (2005-2009) — reclamou do excesso de comentários brasileiros em toda foto que postava nas redes, o amor que antes era voltado ao ator — sim, de maneira um tanto exagerada — logo se transformou em hate.

“Uma nação que assistia foi demonstrar seu carinho, e ele não entendeu dessa forma”, acrescenta Amado. “Foi triste para ele, mas achei muito bonito ver um país inteiro sentindo de uma só vez carinho e depois mágoa de forma tão coletiva.” Já o ator Vincent Martella, que vivia o personagem Greg, soube aproveitar como poucos esse engajamento, ganhando milhões de seguidores e até mesmo tirando seu próprio CPF brasileiro — de forma simbólica, é claro.

O ator de “Everybody Hates Chris”, Vincent Martella, aprendeu a surfar na onda dos fãs brasileiros, ganhando milhões de seguidores  Reprodução/Instagram @thevincentmartella

Num outro caso bem mais sério, fãs da cantora Taylor Swift também demonstraram forte apoio após a morte da jovem Ana Clara Benevides durante o show da artista por aqui em 2023. Muitos reivindicaram medidas drásticas relacionadas ao acontecimento e pediram declarações da cantora, que acabou se encontrando com a família da vítima. Alguns inclusive se disseram decepcionados com a falta de atitude imediata da artista e avaliaram repensar tanta idolatria.

Lado B

“Foram aparecendo três pessoas, todas me ameaçando e dizendo que o voo não ia sair, que todo mundo ia ter que descer por minha causa.” Quando a atriz Ingrid Guimarães postou nas redes seu relato sobre a forma como foi expulsa de seu assento pela companhia aérea American Airlines, a primeira reação da empresa foi um retumbante silêncio.

Usuários brasileiros, é claro, rapidamente se comoveram com a situação e demonstraram seu apoio à atriz. Foram também milhares de comentários nas postagens mais recentes da empresa, reclamando da falta de respeito com a atriz e exigindo algum tipo de resposta. O resultado: em nota, a American Airlines disse ter pedido desculpas a Guimarães, que afirmou pretender processar a companhia pelo ocorrido.

“O caso da Ingrid aconteceu no dia 8, e já virou um case mundial”, comenta Jotta, para quem os fãs se tornaram muito mais organizados em suas ações online nos últimos tempos. “Temos uma grande empresa americana respondendo por questões abusivas. O brasileiro [nas redes] hoje está funcionando mais rápido que a Justiça.” Ou seja, a visibilidade alcançada pela ação dos usuários praticamente obrigou a empresa a dar um retorno sobre o caso.

Na própria campanha pelo Oscar, o engajamento brasileiro teve um resultado inicial bastante positivo. Para se ter uma ideia, diversas publicações estrangeiras decidiram colocar imagens do filme e de Torres como destaque em seus posts para garantir a previsível avalanche de likes, visualizações e comentários — mesmo quando a notícia nem tinha tanto a ver com o longa assim. Para Jotta, esse lado positivo do nosso engajamento também se estende a uma série de questões relevantes para a sociedade. “A gente tem um senso de comunidade muito grande, e esse movimento todo fica refletido na internet.”

Fabiano Carvalho, da Monks, destaca a capacidade de os fãs moverem montanhas inclusive em termos de mobilização social. Em 2023, a cantora Ludmilla ajudou a quebrar recordes de doação de sangue ao oferecer ingressos para seu show a fãs que se voluntariassem. Foram mais de duas mil bolsas de sangue em apenas três dias de campanha, ajudando mais de oito mil pessoas.

Fãs de artistas como Anitta e grupos de k-pop também se envolvem com frequência em questões identitárias e de defesa de direitos sociais, refletindo posicionamentos dos ídolos. “Não é só sobre números e charts. Também tem essa pegada de ‘vamos fazer isso juntos, vamos fazer acontecer'”, afirma Carvalho.

Uma prática antiga

O que vemos hoje nas redes sociais, aliás, é um desdobramento do comportamento dos brasileiros que já vem de um bom tempo atrás, diz Quentin Mahé, da Monks. Talvez da própria formação da sociedade brasileira. Mahé, que é francês e vive há 12 anos no Brasil, destaca que o acolhimento e o carinho fazem parte da nossa cultura. “Acho que esse esforço a mais dos fandoms é relacionado a uma quase carência. Tivemos vocês [artistas estrangeiros] tão pouco aqui conosco que agora vão ter que nos adorar”, aponta.

Para a professora Clarice Greco, o fato de falarmos português também acaba nos isolando em meio a uma América Latina em que a maioria das nações é irmã em termos linguísticos — unidade parcialmente recuperada na torcida por “Ainda Estou Aqui” no Oscar. “A gente gosta de ser visto, existe esse orgulho. E isso se junta com o brasileiro ser ativista da própria cultura. Quando alguma coisa chega perto de ser vista pelo mundo, vamos todos nos unir”, avalia a pesquisadora.

Por isso, fomos ver Bruna Marquezine nos cinema em “Besouro Azul” (2023) e ajudamos Anitta a chegar ao topo do Spotify com o hit “Envolver”. Apesar da impressão de que hoje somos mais fortes e organizados graças às redes, Greco destaca ainda que esses movimentos existiam mesmo antes da internet, com os fã-clubes, que tinham carteirinha e até jornal voltado para o ídolo.

Mas, se hoje surfamos nos algoritmos e dominamos as redes, é porque fomos aprendendo a usar os mecanismos online a nosso favor, diz Andréa Jotta. O que não significa que vai ser assim para sempre. Conforme a avalanche dos fãs brasileiros chama a atenção do mundo, podem surgir novas tentativas de impedir essa onda, diz a psicóloga, a exemplo do bloqueio nos posts do Oscar. “No momento, a gente tem a faca e o queijo na mãe, e está aproveitando”, afirma Jotta. “Mas não acredito que vão deixar a gente continuar brincando desse jeito, deixar o Brasil seguir despontando numa internet mundial.”